sexta-feira, 12 de junho de 2015

Análise crítica do filme “O contador de histórias” sob os aspectos da Psicanálise, Behaviorismo e Psicologia da Gestalt, violência infantil e subjetividade da criança e do adolescente.

 
Régia Cristina Alves de Carvalho Maciel¹

¹Aluna de graduação do curso de Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
 
  1. Introdução
O filme “O contador de histórias” retrata uma história verídica de uma criança entregue pela mãe à Fundação do Bem-estar do Menor (FEBEM), acreditando que seria o melhor para seu filho. Tal fato ocorreu nos anos 70 e tem como personagem principal o Roberto Carlos Ramos, nascido em 20 de Novembro de 1965. A vida desta criança começa a tomar outros contornos quando ele conhece a pedagoga Margherit, uma francesa que esteve no Brasil para fazer uma pesquisa em sua área de formação.

Os anos 70 ainda estavam marcados pelo período da ditadura, com taxa de analfabetismo em torno 33,6%1. Antes, em 1964 instituiu-se a Política do Bem-Estar do Menor (PNBEM) com a finalidade de assegurar a integração do menor à comunidade, entre outras. Mas que na prática continuaram utilizando-se das condutas obsoletas, de abusos e corrupções2.

  1. Breve histórico
Até 1935, os “menores” abandonados e infratores eram, indistintamente, apreendidos nas ruas e levados a abrigos de triagem. Em 1940, se edita o atual Código Penal Brasileiro, onde a idade para a imputabilidade penal se define aos 18 anos. Em 1942 se cria o SAM (Serviço de Assistência ao Menor), órgão do Ministério da Justiça, de orientação correcional-repressiva. O SAM se estruturou sob a forma de reformatórios e casas de correção para adolescentes infratores e de patronatos agrícolas e escolas de aprendizagem de ofícios urbanos para menores carentes e abandonados. O SAM é reconhecido por muitos autores como a primeira política pública estruturada para a infância e adolescência no Brasil. Surgem, também, nesta época, diversas casas de atendimento sob as ordens da primeira dama, ou seja, diretamente ligadas ao poder central.3
 
Sobre a FEBEM, este teve a finalidade de formular e implantar programas de atendimento a menores em situação irregular, prevenindo-lhes a marginalização e oferecendo-lhes oportunidades de promoção social4. Por algum motivo as tentativas de o Estado tutelar as crianças e adolescentes não vem dando certo. Antes da FEBEM existiu o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), em 1942, o qual fora extinto após 1964. Neste período houve denúncias de maus tratos, corrupção e superlotação5, algo não muito diferente do que ocorre na atual Fundação Estadual da Criança e Adolescente (FUNDAC)6 que recentemente, no Rio Grande do Norte, teve prorrogada a intervenção feita pelo poder judiciário7 8.

É uma crise institucional de longas datas, sempre em busca de ajudar a criança e o adolescente em situação de risco social ou que cometem atos infracionais. Que a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente deu-se mais foco sob a proteção integral da criança e adolescente, mas que persistem as crises e denúncias de maus-tratos.

  1. Infância e psicanálise
A criança no seu desenvolvimento passa por um processo singular na formação da personalidade, nesse período as influências, as situações vividas contribuem de forma determinante para a formação do indivíduo, sua maturação, sua percepção de mundo. E neste aspecto o papel da família é essencial como forma de moldar, de criar o recalque a fim de incutir o discernimento sobre o que moral e imoral, ético e antiético, o certo e errado, honesto e desonesto.

Observa-se no filme O contador de histórias que o garoto foi deixado pela mãe na FEBEM quando tinha 6 anos, naquele momento a criança pensou que a mãe o tinha esquecido lá quando ela o deixou, isto em si já traz um sofrimento para a criança que não entende a situação e pode por vezes se sentir culpada por aquilo, naquela noite nem chorar ele pode. Certamente esse fato deixou marcas no inconsciente dele que posteriormente poderão ser expressas de alguma forma agressiva ou não. 
 
É possível observar em determinada cena, no primeiro encontro com a Margherit, ele lhe contou a própria história criando uma fantasia sobre o dia em que chegou na FEBEM, disse ele que junto com sua família foram assaltar um banco, quando a polícia chegou fugiram, mas que ele foi pego, e sua mãe disse para ele não se preocupar pois iria para FEBEM e se tornaria um doutor.

Certamente essa fantasia por ele criada pode ter sido uma forma de encobrir o sofrimento desse primeiro momento que se achou abandonado pela mãe. Como forma de ocultar para si mesmo algo que achou ruim e transformou isso em sonho, delírio.

A “psicanálise enquanto teoria é um conjunto de conhecimentos sistematizados sobre o funcionamento da vida psíquica, e enquanto método de investigação busca o significado oculto daquilo que é manifesto por meio de ações e palavras ou pelas produções imaginárias (sonhos, delírios, associações, atos falhos)9”, é possível evidenciar este conceito da psicanálise na cena explicitada acima.

  1. Infância e o Behaviorismo
Ao completar 7 anos, o Roberto foi transferido para a ala dos que tinham entre 7 e 14 anos, lá ele vivenciou outra realidade já mergulhada na violência, pois a primeira coisa que relatou foi que apanhou dos meninos mais velhos, e que percebeu que tinha quer ser valentão e dizer palavrão para poder ser aceito.

Pelo viés do Behaviorismo é possível analisar que a mudança de comportamento do garoto se deu em virtude dos estímulos negativos por ele sofridos, que para se impor teve que se comportar igualmente aos outros garotos.

Fato recorrente também relatado pelo garoto foram as fugas da Instituição, dos 8 anos 13 anos, incontáveis fugas. Em determinado momento do filme a própria diretora da FEBEM diz à Margherit que o garoto era “irrecuperável”. Tais fugas ocorriam devido os garotos sofrerem violência dentro da instituição, se deu como resposta a um estímulo aversivo para evitar as situações de “violência interna”.

No estudo do Behaviorismo, focado no comportamento, este vai indicar a interação entre o indivíduo e o ambiente. Nele preceitua que o comportamento trata-se de interações de estímulo-resposta, independe de aprendizagem, são respondentes. Possível inferir que as fugas se davam na seguinte lógica: se sofro violência na FEBEM então vou fugir de lá; se me recapturam, volto a fugir.

  1. Adolescência e Gestalt
Fato marcante na vida do garoto foi ter conhecido a pedagoga Margherit, ela que a princípio quis apenas realizar sua pesquisa como pedagoga, envolveu-se e cuidou do garoto, o ensinou a ler e escrever. Quis conhecer toda a história de vida dele e a partir daí tentou compreender suas atitudes e tentar trabalhar para que o garoto pudesse ver no mundo de outra forma, mostrando-lhe outros significados, que não tivesse violência, que não precisasse sempre ter violência. Que o garoto poderia muito bem ir aos locais públicos sem se preocupar em ser preso, fez ele ver o mundo diferente, além da realidade que até então ele conhecia.

A pedagoga levou o garoto para assistir uma partida de futebol, lá chegando, quando o menino viu os guardas revistando o público logo se assustou achando que iriam “levá-lo”. Era essa a visão de mundo que ele tinha, sempre sendo recapturado e levado à FEBEM, mas a Margherit o fez perceber que ele estava uma pessoa diferente, o encorajou e o estimulou a ver a situação diferente, isso ajudou a mudar o comportamento do menino que voltou aos guardas e levantou os braços para ser revistado, dessa vez sem o medo de ser capturado.

Na teoria do Gestalt, que se dedica ao estudo da percepção, os gestaltistas acreditam que há mais coisas na percepção do que vêem os nossos olhos, que a nossa percepção vai além dos elementos sensoriais, dos dados físicos básicos fornecidos pelos órgãos dos sentidos. O que o indivíduo percebe e como percebe são dados importantes para a compreensão do comportamento humano . Que a percepção permite que atribuamos sentidos e significados ao mundo. E por fim, a maneira como percebemos um determinado estímulo irá desencadear nosso comportamento10 .

O incentivo da pedagoga na vida do garoto foi fundamental para ele perceber que tinha uma vida diferente, que ele se percebesse diferente no mundo.

  1. Violência contra crianças e adolescentes, o que mudou o que permanece?
A violência como ação ou omissão, impregnada ou não de agressividade, deixa marcas físicas ou psicológica no ser humano, principalmente na fase mais susceptível da vida que é a infantil. A literatura aponta que maus tratos, violência física, sexual e outras formas sempre existiram11 12, desse modo não há como se vislumbrar que tenha havido mudanças quanto possível redução de violência contra crianças e adolescentes.

Alteração percebida pode ser no tocante ao tipo de violência cometidas pelos próprios adolescentes, que nos anos 1900 e seguintes praticavam predominantemente o desordem, seguido pela vadiagem, embriagues e furto e por último o homicídio13. O que provavelmente deve-se a situação de vulnerabilidade que estavam submetidos. Mas que atualmente esse cenário é um pouco diverso devido a inclusão nos crimes relacionados às drogas ilícitas.

  1. Lugar da psicologia e da justiça no filme e seus impactos na subjetividade da criança e adolescente
A psicologia, antes de assumir postura mais intervencionista nos cuidados das crianças e adolescentes, era tida apenas como uma técnica de exame a fim de encontrar a verdade jurídica14, demonstrada a insuficiência desta atuação, abriu-se espaço para escuta do cliente (criança/adolescente) a fim de tratar a singularidade de cada caso, tendo em vista que esses atores/vítimas de violência sofrem e merecem cuidados. O Estado, ao tutelar o direito da criança e do adolescente, principalmente após a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promoveu a doutrina da proteção integral que além de abranger as crianças/adolescentes em situação de irregular15, vai abarcar todas as crianças na condição de serem tratadas como sujeitos de direitos que merece proteção da família, sociedade e do Estado e os várias garantias asseguradas no art. 227 da Constituição Federal.

Neste aspecto, acerca do filme, observa-se que os profissionais ali envolvidos não tinham o comprometimento com a construção da subjetividade da criança/adolescente ali internado, o tratavam sem o individualismo necessários, sem atender condições e necessidades específicas de cada um dos garotos. Fato bastante contrário aos ideias preconizados em toda legislação vigente até então.

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  •  Referências

1 Evolução demográfica entre 1950 a 2010, IBGE, disponível em <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/0000000403.pdf>, acessado dia 16/04/2015
2 Conforme explicação dada em aula.
3 O Código de Menores e o Estatuto da Criança e do Adolescente: avanços e retrocessos, disponível em <http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/o-c%C3%B3digo-de-menores-e-o-estatuto-da-crian%C3%A7a-e-do-adolescente-avan%C3%A7os-e-retrocessos>, acessado dia 16/04/2015.
4 História da Fundação para Infância e Adolescência, disponível em <http://www.fia.rj.gov.br/historia.htm>, acessado dia 16/04/2015.
5 O Código de Menores e o Estatuto da Criança e do Adolescente: avanços e retrocessos, disponível em <http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/o-c%C3%B3digo-de-menores-e-o-estatuto-da-crian%C3%A7a-e-do-adolescente-avan%C3%A7os-e-retrocessos>, acessado dia 16/04/2015.
6 Tem como finalidade executar, a nível estadual, a política de atendimento dos direitos de defesa da criança e do adolescente com autoria de ato infracional, sob medida judicial de privação e restrição de liberdade e, numa ação complementar aos Municípios, daquelas crianças e adolescentes que sobrevivem em situação de risco pessoal ou social. - See more at: http://www.fundac.rn.gov.br/Conteudo.asp?TRAN=ITEM&TARG=20536&ACT=&PAGE=0&PARM=&LBL=A+Funda%E7%E3o#sthash.3DadH5S4.dpuf
7 Defensoria Pública apura denúncias de maus tratos contra menores no RN, disponível em <http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2014/04/defensoria-publica-apura-denuncias-de-maus-tratos-contra-menores-no-rn.html> , acessado dia 16/04/2015
8 'Que o Estado não atrapalhe', diz juiz sobre intervenção da Fundac no RN, disponível em <http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2014/03/que-o-estado-nao-atrapalhe-diz-juiz-sobre-intervencao-da-fundac-no-rn.html>, acessado dia 16/04/2015
9 Conceito dado em aula pela Profª Patrícia
10 Conforme conceitos dado em aula
11 Mapa da violência 2012. Crianças e Adolescente do Brasil, Júlio Jacobo Waiselfisz, disponível em <http://mapadaviolencia.org.br/pdf2012/MapaViolencia2012_Criancas_e_Adolescentes.pdf>, acessado dia 16/04/2015
12 Estupros lideram casos de violência contra a criança e adolescente em SE, disponível em <http://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/2014/10/estupros-lideram-casos-de-violencia-contra-crianca-e-adolescente-em-se.html>, acessado dia 16/04/2015.
13 Del Priore, 2004. Slide mostrado em aula.
14 Hélio Cardoso de Miranda Júnior. Psicologia e Justiça, A Psicologia e as Práticas Judiciárias na Construção do Ideal de Justiça , pág. 29
15 Não inseridos em uma família, ou cometido atos infracionais





 Bons estudos!




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