Régia Cristina Alves de Carvalho Maciel¹
- Introdução
O filme “O
contador de histórias”
retrata uma história verídica
de uma criança entregue
pela mãe à
Fundação do Bem-estar
do Menor (FEBEM),
acreditando que seria o melhor para seu filho. Tal fato ocorreu nos
anos 70 e tem como
personagem principal o Roberto Carlos Ramos, nascido em 20 de
Novembro de 1965. A vida
desta criança começa a tomar outros contornos quando ele conhece a
pedagoga
Margherit, uma francesa que esteve no Brasil para fazer uma pesquisa
em sua área de formação.
Os anos 70 ainda estavam marcados
pelo período da ditadura,
com taxa de analfabetismo em
torno 33,6%1.
Antes, em 1964
instituiu-se a Política do Bem-Estar do Menor (PNBEM) com
a finalidade de assegurar a integração
do menor à comunidade, entre
outras. Mas que na prática continuaram utilizando-se das condutas
obsoletas, de abusos e corrupções2.
- Breve histórico
Até 1935, os “menores”
abandonados e infratores eram, indistintamente, apreendidos nas ruas
e levados a abrigos de triagem. Em 1940, se edita o atual Código
Penal Brasileiro, onde a idade para a imputabilidade penal se define
aos 18 anos. Em 1942 se cria o SAM (Serviço de Assistência ao
Menor), órgão do Ministério da Justiça, de orientação
correcional-repressiva. O SAM se estruturou sob a forma de
reformatórios e casas de correção para adolescentes infratores e
de patronatos agrícolas e escolas de aprendizagem de ofícios
urbanos para menores carentes e abandonados. O SAM é reconhecido por
muitos autores como a primeira política pública estruturada para a
infância e adolescência no Brasil. Surgem, também, nesta época,
diversas casas de atendimento sob as ordens da primeira dama, ou
seja, diretamente ligadas ao poder central.3
Sobre a FEBEM, este
teve a finalidade
de formular e implantar
programas de atendimento a menores em situação irregular,
prevenindo-lhes a marginalização e oferecendo-lhes oportunidades de
promoção social4.
Por algum motivo as
tentativas de o Estado tutelar as crianças e adolescentes não vem
dando certo. Antes da FEBEM existiu o Serviço de Assistência ao
Menor (SAM), em 1942, o qual
fora
extinto
após 1964. Neste período
houve denúncias de maus tratos, corrupção e superlotação5,
algo não muito diferente do
que ocorre
na atual
Fundação Estadual da
Criança e Adolescente (FUNDAC)6
que recentemente, no
Rio Grande do Norte, teve prorrogada
a intervenção feita pelo
poder judiciário7
8.
É uma crise institucional de
longas datas, sempre em busca de ajudar a criança e o adolescente em
situação de risco social ou que cometem atos infracionais. Que a
partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente
deu-se mais foco sob a proteção integral da criança e adolescente,
mas que persistem as crises
e denúncias de maus-tratos.
- Infância e psicanálise
A criança no seu desenvolvimento
passa por um processo singular na formação da personalidade, nesse
período as influências, as situações vividas contribuem de forma
determinante para a formação do indivíduo, sua
maturação, sua percepção
de mundo. E
neste aspecto o papel da família é essencial como forma de moldar,
de criar o recalque a fim de incutir o discernimento sobre o que
moral e imoral,
ético e antiético,
o certo e errado, honesto e
desonesto.
Observa-se no filme O
contador de histórias
que o garoto foi deixado pela mãe na FEBEM quando tinha 6
anos, naquele momento a
criança pensou que a mãe o
tinha esquecido lá quando ela o deixou, isto em si já traz um
sofrimento para a criança que não entende a situação e pode por
vezes se sentir culpada por aquilo, naquela
noite nem chorar ele pode.
Certamente esse fato deixou marcas no inconsciente dele que
posteriormente poderão ser expressas de alguma forma agressiva
ou não.
É possível observar em
determinada cena, no primeiro encontro com a Margherit,
ele lhe contou
a própria história criando uma fantasia sobre o dia em que chegou
na FEBEM, disse ele que
junto com sua
família foram assaltar um banco, quando a polícia chegou
fugiram, mas que ele foi pego, e sua mãe disse para ele não se
preocupar pois iria para FEBEM e se tornaria
um doutor.
Certamente essa fantasia por ele
criada pode
ter sido uma forma de encobrir o sofrimento desse primeiro momento
que se achou abandonado pela mãe. Como
forma de ocultar para si mesmo algo que achou ruim e transformou isso
em sonho, delírio.
A
“psicanálise
enquanto
teoria é um conjunto de conhecimentos sistematizados sobre o
funcionamento da vida psíquica, e
enquanto método de investigação busca
o significado oculto daquilo que é manifesto por meio de ações e
palavras ou pelas produções imaginárias (sonhos, delírios,
associações, atos falhos)9”,
é possível evidenciar este conceito da
psicanálise na cena explicitada acima.
- Infância e o Behaviorismo
Ao completar 7 anos, o Roberto foi transferido para a ala dos que
tinham entre 7 e 14 anos, lá ele vivenciou outra realidade já
mergulhada na violência, pois a primeira coisa que relatou foi que
apanhou dos meninos mais velhos, e que percebeu que tinha quer ser
valentão e dizer palavrão para poder ser aceito.
Pelo viés do Behaviorismo é possível analisar que a mudança de
comportamento do garoto se deu em virtude dos estímulos negativos
por ele sofridos, que para se impor teve que se comportar igualmente
aos outros garotos.
Fato recorrente também relatado pelo garoto foram as fugas da
Instituição, dos 8 anos 13 anos, incontáveis fugas. Em determinado
momento do filme a própria diretora da FEBEM diz à Margherit que o
garoto era “irrecuperável”. Tais fugas ocorriam devido os
garotos sofrerem violência dentro da instituição, se deu como
resposta a um estímulo aversivo para evitar as situações de
“violência interna”.
No estudo do
Behaviorismo,
focado
no comportamento,
este
vai indicar a interação entre o indivíduo e o ambiente. Nele
preceitua que o
comportamento trata-se de interações de estímulo-resposta,
independe de aprendizagem, são respondentes. Possível
inferir que as fugas se davam na seguinte lógica: se sofro
violência
na FEBEM então vou fugir de lá; se me recapturam, volto a fugir.
- Adolescência e Gestalt
Fato marcante na vida do garoto foi ter conhecido a pedagoga
Margherit, ela que a princípio quis apenas realizar sua pesquisa
como pedagoga, envolveu-se e cuidou do garoto, o ensinou a ler e
escrever. Quis conhecer toda a história de vida dele e a partir daí
tentou compreender suas atitudes e tentar trabalhar para que o garoto
pudesse ver no mundo de outra forma, mostrando-lhe outros
significados, que não tivesse violência, que não precisasse sempre
ter violência. Que o garoto poderia muito bem ir aos locais públicos
sem se preocupar em ser preso, fez ele ver o mundo diferente, além
da realidade que até então ele conhecia.
A pedagoga levou o garoto para assistir uma partida de futebol, lá
chegando, quando o menino viu os guardas revistando o público logo
se assustou achando que iriam “levá-lo”. Era essa a visão de
mundo que ele tinha, sempre sendo recapturado e levado à FEBEM, mas
a Margherit o fez perceber que ele estava uma pessoa diferente, o
encorajou e o estimulou a ver a situação diferente, isso ajudou a
mudar o comportamento do menino que voltou aos guardas e levantou os
braços para ser revistado, dessa vez sem o
medo de ser capturado.
Na teoria do
Gestalt, que se dedica ao estudo da percepção,
os gestaltistas acreditam que há mais coisas na percepção do que
vêem os nossos olhos, que a nossa percepção vai além dos
elementos sensoriais, dos dados físicos básicos fornecidos pelos
órgãos dos sentidos. O que
o indivíduo percebe e como percebe são dados importantes para a
compreensão do comportamento humano . Que
a percepção permite que atribuamos sentidos e significados
ao mundo. E por fim, a maneira como percebemos um determinado
estímulo irá desencadear nosso comportamento10
.
O incentivo da pedagoga na vida do garoto foi
fundamental para ele perceber que tinha uma vida diferente, que ele
se percebesse diferente no mundo.
- Violência contra crianças e adolescentes, o que mudou o que permanece?
A violência como ação ou omissão, impregnada ou não de
agressividade, deixa marcas físicas ou psicológica no ser humano,
principalmente na fase mais susceptível da vida que é a infantil. A
literatura aponta que maus tratos, violência física, sexual e
outras formas sempre existiram11
12,
desse modo não há como se vislumbrar que tenha havido mudanças
quanto possível redução de violência contra crianças e
adolescentes.
Alteração percebida pode ser no tocante ao tipo de violência
cometidas pelos próprios adolescentes, que nos anos 1900 e seguintes
praticavam predominantemente o desordem, seguido pela vadiagem,
embriagues e furto e por último o homicídio13.
O que provavelmente deve-se a situação de vulnerabilidade que
estavam submetidos. Mas que atualmente esse cenário é um pouco
diverso devido a inclusão nos crimes relacionados às drogas
ilícitas.
- Lugar da psicologia e da justiça no filme e seus impactos na subjetividade da criança e adolescente
A psicologia, antes de assumir postura mais
intervencionista nos cuidados das crianças e adolescentes, era tida
apenas como uma técnica de exame a fim de encontrar a verdade
jurídica14,
demonstrada a insuficiência desta atuação, abriu-se espaço para
escuta do cliente (criança/adolescente) a fim de tratar a
singularidade de cada caso, tendo em vista que esses atores/vítimas
de violência sofrem e merecem cuidados. O Estado, ao tutelar o
direito da criança e do adolescente, principalmente após a
promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
promoveu a doutrina da proteção integral que além de abranger as
crianças/adolescentes em situação de irregular15,
vai abarcar todas as crianças na condição de serem tratadas como
sujeitos de direitos que merece proteção da família, sociedade e
do Estado e os várias garantias asseguradas no art. 227 da
Constituição Federal.
Neste aspecto, acerca do filme, observa-se que
os profissionais ali envolvidos não tinham o comprometimento com a
construção da subjetividade da criança/adolescente ali internado,
o tratavam sem o individualismo
necessários, sem atender condições e necessidades específicas de
cada um dos garotos. Fato bastante contrário aos ideias preconizados
em toda legislação vigente até então.
- Referências
1 Evolução
demográfica entre 1950 a 2010, IBGE, disponível em
<http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/0000000403.pdf>,
acessado dia 16/04/2015
2 Conforme
explicação dada em aula.
3 O
Código de Menores e o Estatuto da Criança e do Adolescente:
avanços e retrocessos, disponível em
<http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/o-c%C3%B3digo-de-menores-e-o-estatuto-da-crian%C3%A7a-e-do-adolescente-avan%C3%A7os-e-retrocessos>,
acessado dia 16/04/2015.
4 História
da Fundação para Infância e Adolescência, disponível em
<http://www.fia.rj.gov.br/historia.htm>,
acessado dia 16/04/2015.
5 O
Código de Menores e o Estatuto da Criança e do Adolescente:
avanços e retrocessos, disponível em
<http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/o-c%C3%B3digo-de-menores-e-o-estatuto-da-crian%C3%A7a-e-do-adolescente-avan%C3%A7os-e-retrocessos>,
acessado dia 16/04/2015.
6 Tem
como finalidade executar, a nível estadual, a política de
atendimento dos direitos de defesa da criança e do adolescente com
autoria de ato infracional, sob medida judicial de privação e
restrição de liberdade e, numa ação complementar aos Municípios,
daquelas crianças e adolescentes que sobrevivem em situação de
risco pessoal ou social. - See more at:
http://www.fundac.rn.gov.br/Conteudo.asp?TRAN=ITEM&TARG=20536&ACT=&PAGE=0&PARM=&LBL=A+Funda%E7%E3o#sthash.3DadH5S4.dpuf
7 Defensoria
Pública apura denúncias de maus tratos contra menores no RN,
disponível em
<http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2014/04/defensoria-publica-apura-denuncias-de-maus-tratos-contra-menores-no-rn.html>
, acessado dia 16/04/2015
8 'Que
o Estado não atrapalhe', diz juiz sobre intervenção da Fundac no
RN, disponível em
<http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2014/03/que-o-estado-nao-atrapalhe-diz-juiz-sobre-intervencao-da-fundac-no-rn.html>,
acessado dia 16/04/2015
9 Conceito
dado em aula pela Profª Patrícia
10 Conforme
conceitos dado em aula
11 Mapa
da violência 2012. Crianças e Adolescente do Brasil, Júlio Jacobo
Waiselfisz, disponível em
<http://mapadaviolencia.org.br/pdf2012/MapaViolencia2012_Criancas_e_Adolescentes.pdf>,
acessado dia 16/04/2015
12 Estupros
lideram casos de violência contra a criança e adolescente em SE,
disponível em
<http://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/2014/10/estupros-lideram-casos-de-violencia-contra-crianca-e-adolescente-em-se.html>,
acessado dia 16/04/2015.
13 Del
Priore, 2004. Slide mostrado em aula.
14 Hélio
Cardoso de Miranda Júnior. Psicologia e Justiça, A Psicologia e as
Práticas Judiciárias na Construção do Ideal de Justiça , pág.
29
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe aqui seu comentário!