segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Crédito Tributário e Lançamento

FICHAMENTO DOS CAPÍTULO XII CRÉDITO TRIBUTÁRIO E LANÇAMENTO DA OBRA CURSO DE DIREITO TRIBUTÁRIO DE PAULO DE BARROS CARVALHO (SÃO PAULO: SARAIVA, 2012, P. 331 A 389). Versão epub




  1. Enunciados e objetivos da experiência - “fato” como enunciado protocolar - a constituição jurídica do “fato”

Jurgen Habermas1 trabalha com a distinção entre fatos e objetos da experiência. Os fatos seriam os enunciados linguísticos sobre as coisas e os acontecimentos, sobre as pessoas e suas manifestações. Os objetos da experiência são aquilo acerca do que fazemos afirmações, aquilo sobre que emitimos enunciados… E Robert Alexy2... esclarece que a condição para a verdade das proposições é o acordo potencial de todos os demais…
Essa também é a perspectiva de Tércio Sampaio Ferraz Jr.3 com relação ao conceito de fato: “É preciso distinguir entre fato e evento…’Fato’ não é pois algo concreto, sensível, mas um elemento linguístico capaz de organizar uma situação existencial como realidade”.
(...)
Não é qualquer função pragmática da linguagem que propicia a composição de um enunciado factual. Além da linguagem descritiva, indicativa ou declarativa,..., torna-se possível emitir enunciados fácticos também em linguagem prescritiva e em linguagem operativa ou performativa… Na composição de tais enunciados, sobre as regras que orientam a boa formação sintática, hão de observar-se os usos do idioma, sem que o sentido daquelas estruturas não será apto para fins denotativos… Como salienta Tércio Sampaio Ferra Jr4, não teria cabimento afirmar-se como fato acontecimento futuro. Por outro lado, tal afirmação não significa a impossibilidade de construir conjuntos que possam receber, um a um, as ocorrências factuais que venham a suceder… São assim as previsões hipotéticas: “dado que alguém realize operações relativas à circulação de mercadorias, no território do Estado de São Paulo, reputando-se acontecido o fato no momento em que as mercadorias deixarem o estabelecimento do contribuinte, então...”. ... É bom ter presente que a formação desses segmentos linguísticos com sentido completo pressupõe um processo seletivo, com a eleição dos traços julgados mais relevantes para a identificação do objeto da experiência, refletindo, não o real, mas um ponto de vista sobre o real, como salienta Samira Chalhub5.
A esta altura, já podemos dizer que o enunciado factual é protocolar, surpreendendo uma alteração devidamente individualizada do mundo fenomênico, com a clara determinação das condições de espaço e de tempo em que se deu a ocorrência. Articulação de linguagem organizada assim, com esse teor de denotatividade, chamaremos de fato, fato político, econômico, biológico, psicológico, histórico, jurídico etc. No direito positivo, correspondem ao antecedente das normas individuais e concretas.
Nos enunciados que se projetem para o futuro, selecionando marcas, aspectos, pontos de vista, linhas, traços, caracteres, que não se refiram a um acontecimento isolado, mas que se prestem a um número indeterminado de situações, reconheceremos as previsões típicas que aparecem nos antecedentes normativos, de feição predominantemente conotativa. Chamá-los-emos “enunciados conotativos” e diremos que frequentam as normas jurídicas gerais e abstratas. Vamos ter, então, enunciados denotativos ou fatos e enunciados conotativos ou classes formadas com os predicados que os enunciados factuais deverão conter. (...)
Os enunciados das normas gerais e abstratas, ..., necessitam dos enunciados denotativos das normas individuais para atingirem a concretude da experiência social.
(...), porquanto nossa proposta epistemológica descansa precisamente na circunstância de que há uma linguagem, que nominamos de social, constituidora da realidade que nos cerca. Sobre essa camada, a “linguagem do direito positivo”, como discurso prescritivo de condutas, vai suscitar aquele plano que tratamos como sendo da “facticidade jurídica”: fatos jurídicos (...) são os enunciados proferidos na linguagem competente do direito positivo, articulados em consonância com a teoria das provas. (...).
Com efeito, se as mutações que se derem entre os objetos da experiência vierem a ser contadas em linguagem social, teremos os fatos, no seu sentido mais largo e abrangente. (...). Da mesma forma, para o ponto de vista do direito, os fatos da chamada realidade social serão simples eventos, enquanto não forem constituídos em linguagem jurídica própria.(...).
É que, muitas vezes, o direito posto não se satisfaz com a linguagem ordinária que utilizamos em nossas comunicações corriqueiras: exige uma forma especial, fazendo adicionar declarações perante autoridades determinadas, requerendo a presença de testemunhas e outros requisitos mais.(...).
Um trecho da obra de San Tiago Dantas cai como uma luva para ilustrar o que acaba de ser dito:
Se o Registro Civil diz que alguém já morreu, nem mesmo exibindo a pessoa, é possível provar que esse alguém está vivo.
O registro cria, por conseguinte, uma presunção a respeito do estado civil das pessoas, não podendo ser atacada por nenhuma outra prova.
Como, porém, é claro que pode estar errado, tem-se que admitir a retificação dos assentos de registro civil e até mesmo a anulação dos assentos quando eles forem integralmente falsos. De sorte que, se quiser-se provar a respeito do estado civil de uma pessoa algo diverso do que diz o registro civil, preliminarmente, há voltar-se contra o próprio assento de registro civil e, depois de anulado, ou retificado, é que se poderá trazer a sua prova a juízo. Aliás, nesse momento, não haverá nenhuma outra, senão aquela, porque a anterior estará destruída pelo processo que se moveu. Portanto, vê-se que o registro civil é algo de extraordinário alcance6.
(...)
  1. O evento previsto em norma e a chamada “relação jurídica efectual”

Predomina a concepção segundo a qual a situação verificada no mundo físico-social, ocorrida em estrita conformidade com a previsão da lei, faria surgir, ..., a relação jurídica, por força da imputação normativa. No campo dos tributos, teríamos o “fato gerador” provocando o nascimento da obrigação tributária, independentemente de qualquer ato específico de reconhecimento de seus destinatários. Daí a tradicional distinção entre o fenômeno da incidência, fulminante e infalível, e o posterior ato de aplicação, confiado à competência dos vários agentes do poder público ou privado e mediante o qual os comandos prescritivos adquiririam eficácia social, cumprindo os objetivos últimos do direito positivo.
No âmbito do sistema de referência com que operamos, nem o evento, (...), nem a chamada “relação efectual”, (…), teriam significação jurídica, como entidades a serem estudadas pela Dogmática.
Poder-se-á objetar que o “fato”, vale dizer, o enunciado de linguagem produzido segundo os rigores da lei, reporta-se à data e às condições do evento, proposição que em parte é verdadeira, mas que não é suficiente para elevar aquela transformação do mundo social à condição de “fato jurídico”. Realizadas as provas (que são também enunciados de linguagem) exigidas pelo ordenamento jurídico, dá-se o fato por existente, pronto para desencadear direitos e deveres correlatos, pouco importando se o evento ocorreu ou não ocorreu. (...).
É preciso dizer que não se está predicando o abandono do “evento” e da correspondente “relação efectual”. Tão só advertindo para a circunstância de que o fato jurídico e a relação jurídica, (...), vão comparecer como objetos de nossa indagação apenas quando revestirem a forma de linguagem, e linguagem competente, significa referir aquela que o sistema prescritivo estabelecer como adequada ao relato do evento e do correlativo vínculo entre sujeitos. (...).
Para a metodologia de nossa análise faz-se necessário relegar o evento e sua relação efectual ao território dos meros objetos da experiência, ao menos até o momento em que, (...), tenham assumido a simbologia própria do jurídico. A partir desse marco falaremos, então, em fato jurídico e relação jurídica; “fato gerador” e obrigação tributária.
  1. O fato jurídico tributário e seu efeito peculiar: instaurar o vínculo obrigacional

Concretizando-se o fato previsto no descritor da regra de incidência, inaugura-se, (...), uma relação jurídica de conteúdo patrimonial, que conhecemos por “obrigação tributária”. (...).
Na verdade, tanto é fato o enunciado protocolar (fato predicativo) que satisfaz as condições de pertinencialidade à classe do descritor da norma geral e abstrata, como é fato a relação jurídica (fato relacional) que se compõe em decorrência (lógica, não cronológica) daquele acontecimento relatado em linguagem. (...). Ambos, porém, são construídos a partir dos critérios da hipótese e da consequência da regra-matriz de incidência, que é norma geral e abstrata.
A composição interna do liame obrigacional (...) é integrada pela presença de três elementos — sujeito ativo, sujeito passivo e objeto — que se entrelaçam num vínculo abstrato.

(...). O objeto é o centro de convergência, para onde afluem as atenções e preocupações dos sujeitos. Diz-se que o sujeito ativo tem o direito subjetivo de exigir a prestação pecuniária. Em contranota, o sujeito passivo tem o dever jurídico de cumpri-la. (...).
(...). Ao direito subjetivo de que está investido o sujeito ativo de exigir o objeto, denominamos crédito. E ao dever jurídico (ou também dever subjetivo) que a ele se contrapõe, de prestar o objeto, designamos débito. (...).
Definimos crédito tributário como o direito subjetivo de que é portador o sujeito ativo de uma obrigação tributária e que lhe permite exigir o objeto prestacional, representado por uma importância em dinheiro.
(...).
  1. A natureza do crédito tributário - crédito e obrigação

Nasce o crédito tributário no exato instante em que irrompe o laço obrigacional, isto é, ao acontecer, (...), aquele evento hipoteticamente descrito no suposto da regra-matriz de incidência tributária, mas desde que relatado em linguagem competente para identificá-lo.
O direito positivo brasileiro, atrelado ao preconceito da chamada “verdade por correspondência”, (...), utiliza signos diferentes, fazendo acreditar que a obrigação surgiria com a ocorrência do simples evento, mas que o crédito seria constituído pelo ato de lançamento, prerrogativa dos funcionários da Administração. Por esse modo, distingue o momento da incidência, na realização do evento, daquele da aplicação, em que o agente administrativo, tomando conhecimento da ocorrência, firmasse em linguagem específica os termos que presidiram o acontecimento, bem como os traços que identificam o laço obrigacional.
Talvez, por ter trilhado esse caminho, teve de incorrer em outra impropriedade, qual seja a de separar o crédito da obrigação, como se pudesse haver esse desnexo. (...). E não pode haver vínculo jurídico de cunho obrigacional se inexistir um sujeito de direito, na condição de credor, em face de outro sujeito de direito, na qualidade de devedor, de tal forma que subtrair o crédito da estrutura obrigacional significa pulverizá-la, fazê-la desaparecer, desmanchando a organização interna que toda relação jurídica há de exibir, como instrumento de direitos e deveres correlatos.
O crédito é elemento integrante da estrutura lógica da obrigação, de tal sorte que ostenta a relação de parte para com o todo. A natureza de ambas as entidades é, portanto, rigorosamente a mesma.
(...).
  1. O crédito tributário no Código Tributário Nacional

A Lei n. 5.172/66 contempla o crédito tributário no Título III, consagrando-lhe seis capítulos. Cuidaremos aqui das Disposições Gerais (Cap. I), onde vêm firmados os conceitos que o legislador emprega no desenvolvimento disciplinar da matéria.

O crédito tributário decorre da obrigação principal e tem a mesma natureza desta.

Eis a redação do art. 139. O dispositivo (...) imprime à dualidade crédito/obrigação um tom explicativo que pode até espertar alguma dúvida, pois, se o crédito decorre da obrigação, é possível supor que haja obrigação sem crédito, o que a Teoria Geral do Direito não concebe. (...).
O preceito não merece, em si, uma crítica mais acesa, se bem que nele já se note a inclinação reprovável de separar-se a obrigação do crédito, cristalizada em vários preceptivos que, a seu tempo, iremos examinando.
O art. 140 introduz a ideia, correta a nosso ver, de que as mutações porventura experimentadas pelo crédito tributário, do seu nascimento à extinção, não afetam o vínculo que lhe deu origem. (...). Há um limite, contudo, que não poderia ser ultrapassado: a exclusão de sua exigibilidade, que equivale, ontologicamente, à extinção. Pecou nisso a proposição normativa que comentamos, porque a exclusão do crédito implica mutilar a obrigação tributária num ponto fundamental à sua existência como figura jurídica. (...).
Excedeu-se a autoridade legislativa ao consignar que a exclusão da exigibilidade do crédito não mexe com a estrutura da obrigação. (...). Excluir o crédito quer dizer excluir o débito, com existências simultâneas, numa correlação antagônica. E modificação de tal vulto extingue a obrigação tributária. (...).
Vamos ao art. 141:
O crédito tributário regularmente constituído somente se modifica ou extingue, ou tem sua exigibilidade suspensa ou excluída, nos casos previstos nesta Lei, fora dos quais não podem ser dispensadas, sob pena de responsabilidade funcional na forma da lei, a sua efetivação ou as respectivas garantias.
Ao referir-se a crédito regularmente constituído, o comando do art. 141 quis aludir ao crédito líquido, já devidamente determinado no seu quantum, estando, portanto, em condições de ser reclamado do devedor. Sempre que o legislador do Código menciona constituir o crédito reporta-se ao ato jurídico administrativo do lançamento, em que o agente público, aplicando a lei ao caso concreto, formaliza a obrigação tributária.
Desse modo, fica patente que as modificações verificadas no crédito já formalizado (única maneira que nos parece possível cogitar de sua existência) hão de ser promovidas, exclusivamente, sob o manto da Lei n. 5.172/66. O funcionário da Administração Tributária está impedido de dispensar a efetivação do crédito ou as respectivas garantias, sob pena de responsabilidade funcional, na forma da lei. (...).
(...), aquilo que o legislador pretendeu exprimir, nessa parte do dispositivo, é que à margem das autorizações expressas na legislação tributária, o funcionário, em qualquer hipótese, não está autorizado a abrir mão da exigência.
Por defeito de estilo, a porção final do mandamento ficou obscura. (...). Mantendo as palavras que o preceptivo contém, ficaria melhor desta maneira:
O crédito tributário regularmente constituído somente se modifica ou se extingue, ou tem sua exigibilidade suspensa ou excluída, nos casos previstos nesta Lei, fora dos quais não podem ser dispensadas a sua efetivação ou as respectivas garantias, sob pena de responsabilidade funcional, na forma da lei.
  1. Sobre a norma individual e concreta que documenta a incidência

(...).
Aquilo que está ao alcance do legislador é aproximar os comandos normativos, cada vez mais, estimulando de maneira crescente as consciências, para determinar as vontades na direção do cumprimento das condutas estipuladas. E isso se faz com o processo de positivação das normas jurídicas, numa trajetória que vai da mais ampla generalidade e abstração, para chegar a níveis de individualidade e concreção.
Esse caminho, (...), iniciando--se por normas jurídicas gerais e abstratas, para chegar às individuais e concretas, e que é conhecido por “processo de positivação”, deve ser necessariamente percorrido, a fim de que o sistema alimente suas expectativas de regulação efetiva dos comportamentos sociais. E tudo se faz como um problema imediato de realização de normas e mediato de realização de valores, visto que estes é que funcionam como fundamentos daquelas, como agudamente nos alerta Lourival Vilanova7.
(...) a norma geral e abstrata, para alcançar o inteiro teor de sua juridicidade, reivindica, incisivamente, a edição de norma individual e concreta. (...).
(...)
  1. Os sujeitos credenciados a emitir a norma individual e concreta relativa à percussão tributária

Quando se fala em expedição de norma jurídica individual e concreta vem, desde logo, à nossa mente, o desempenho de um órgão da Administração ou do Poder Judiciário. E, se passarmos apressadamente, sem refletir, essa ideia equivocada irá provocar um bloqueio, fixando o preconceito de que o administrado, (...), esteja impedido de produzir certas normas individuais e concretas. Mas, não é assim no direito brasileiro. (...): o subsistema prescritivo das regras tributárias prevê a aplicação por intermédio do Poder Público, em algumas hipóteses, e, em outras, outorga esse exercício ao sujeito passivo, de quem se espera, também, o cumprimento da prestação pecuniária.
(...). A transferência de atividades relativas à apuração do débito tributário, para a esfera dos deveres instrumentais ou formais do sujeito passivo, mediante severo controle da entidade tributante, tornou-se viva realidade dos nossos dias. A maior parte dos tributos, (...), estão cometidos ao sujeito passivo da obrigação tributária, cabendo-lhes estabelecer em fatos os eventos tributados e relatar os dados componentes da relação jurídica.
(...).
Por sem dúvida que são atos diversos, porque praticados por sujeitos diferentes, debaixo de normas competenciais também distintas e, desse modo, sotopondo-se a regimes jurídicos que não são exatamente os mesmos, o que legitima a imposição de nomes aptos para discerni-los. (...).
Quando celebrado pelo Poder Público, mediante iniciativa que a lei prevê, (...), utilizaremos o nome “lançamento”, empregando “autolançamento” para as circunstâncias em que a expedição da norma individual e concreta fique por conta do sujeito passivo. (...).
  1. Lançamento tributário - o problema semântico

Na sequência das ideias que venho expondo, o problema semântico está sempre presente, e disso não poderia escapar o termo “lançamento”. (...).
Eurico Marcos Diniz de Santi8 empreendeu esse estudo. Aproveitemos, portanto, suas conclusões:
Assim, no uso técnico-comercial-contábil temos o emprego da expressão lançamento como: (i) ação ou (ii) efeito de escriturar uma verba em livros de escrituração comercial; (iii) a própria verba que se escritura; e (iv) efetuar o cálculo, conferir liquidez a um crédito ou débito.
Em seu desenvolvimento, a legislação e a técnica dogmática incorporaram aos textos legais e à doutrina o termo lançamento, acrescentando, com estas novas aplicações, novo matiz de significados à plurivocidade de sentidos de que já gozava o vocábulo, empregando-o assim: (v) como procedimento administrativo da autoridade competente (art. 142 do CTN), processo, com o fim de constituir o crédito tributário mediante a postura de (vi) um ato-norma administrativo, norma individual e concreta (art. 145 do CTN, caput), produto daquele processo; (vii) como procedimento administrativo que se integra com o ato-norma administrativo de inscrição da dívida ativa; (viii) lançamento tributário como o ato-fato administrativo derradeiro da série em que se desenvolve um procedimento com o escopo de formalizar o crédito tributário; (ix) como atividade material do sujeito passivo de calcular o montante do tributo devido, juridicizada pela legislação tributária, da qual resulta uma (x) norma individual e concreta expedida pelo particular que constitui o crédito tributário no caso dos chamados lançamentos por homologação (Art. 150 do CTN e §§).
Como são muitas as possibilidades de sentido, impõe-se, novamente, o processo de elucidação, que o Código Tributário Nacional, no art. 142, (...), empregou, optando pela alternativa (v), para conceber a figura como procedimento administrativo e acrescentando, no parágrafo único, que a atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória sob pena de responsabilidade funcional.
Entre as decisões tomadas pelo legislador brasileiro, nesse campo, releva acentuar o caráter privativo da realização do lançamento para as autoridades administrativas, o que implicaria admitir a impossibilidade do particular desincumbir-se dessa tarefa. Intuindo, contudo, que isso não seria possível, (...), aquele mesmo legislador determinou que essa atividade do sujeito passivo, bem como seu produto, serão “lançamentos por homologação”, uma vez que ficam sujeitos ao controle do Poder Tributante. (...). A figura canhestra do “lançamento por homologação” é um mero disfarce que o direito positivo criou para atender ao capricho de não reconhecer, na atividade do sujeito passivo, o mesmo ato que costuma celebrar, de aplicação da norma geral e abstrata para o caso concreto. E pretendeu, com isso, ver superado o problema da dualidade aplicativa da regra-matriz de incidência.
Retomemos a mensagem do art. 142, do CTN, (...). A obrigação nasceria com o acontecimento do “fato gerador”, mas surgiria sem crédito que somente com o “procedimento de lançamento” viria a ser “constituído”. Que obrigação seria essa, em que o sujeito ativo nada tem por exigir (crédito) e o sujeito passivo não está compelido a qualquer conduta? O isolamento do crédito em face da obrigação é algo que atenta contra a integridade lógica da relação, condição mesma de sua existência jurídica. (...).
Ao estatuir, no parágrafo único, que a atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional, reitera nosso Código Tributário a opção pelo sentido procedimental do termo “lançamento”, (...).. Adviria daí o “dever-poder” do agente, ao realizar o lançamento, para aqueles que priorizam o aspecto interno (Fazenda — funcionário); e o “poder-dever” da Administração para atuar o lançamento, com ênfase na competência a ser exercida perante o administrado (Fazenda — contribuinte). (...). Sob o ponto de vista lógico, todo dever implica um poder: (...).
Se tentarmos outro trajeto para imaginar o “poder-dever”, chegaremos igualmente a soluções absurdas: (Pp. Op) significaria uma conduta “p”, simultaneamente, permitida e obrigatória. Como em toda obrigação está embutida a permissão, bastaria registrar a conduta obrigatória (“Op”), sendo despicienda a referência à permissão (“Pp”).
(...).
A título de remate, aproveita-se aqui, por procedente, a sutil distinção lembrada pelo Prof. Walter Barbosa Correa9, entre poder de tributar e direito de tributar, atividades em constante tensão nesse setor da disciplina jurídica.
Se nem sempre andou bem o legislador do CTN, ao disciplinar a matéria tributária, não merece censuras ao apontar como vinculada a atividade de lançamento e não o ato de lançamento. Vinculado é o processo, não o produto. (...). O conceito de procedimento vinculado à lei vem experimentando acentuada degradação de ordem semântica. (...). Dá-nos conta dessa preocupação a Professora Lúcia Valle Figueiredo10: Verifica-se, portanto, que se encontra em crise, como brilhantemente afirma Satta, o próprio conceito de vinculação.
Com as devidas reservas, continuo operando com a definição oferecida por Celso Antônio Bandeira de Mello11, segundo a qual ato vinculado é aquele em que, por existir prévia e objetiva tipificação legal do único possível comportamento da Administração em face de situação igualmente prevista em termos de objetividade absoluta, a Administração, ao expedi-lo, não interfere com apreciação subjetiva alguma. (...). Parto de outras premissas, que não concedem garantias de unissignificação, a não ser para os termos das linguagens formalizadas (Lógica, Matemática etc.), entendendo que todos os vocábulos das linguagens de objetos não ideais são vagos e, ao menos potencialmente, ambíguos. (...).
A vinculação do ato administrativo, que, no fundo, é a vinculação do procedimento aos termos estritos da lei, assume as proporções de um limite objetivo a que deverá estar atrelado o agente da Administração, mas que realiza, mediatamente, o valor da segurança jurídica. Se a vinculação não é, em si mesma, (...) um valor, persegue-o de perto, assumindo a feição bipolar característica dos valores. Na outra ponta está a discricionariedade que, (...) nesse setor da disciplina jurídica aparece como um desvalor, algo indesejado nos procedimentos administrativos que lidam com tributos. (....). E o sistema brasileiro adotou o princípio da reserva legal absoluta que implica reservar exclusivamente à lei a definição dos elementos ou notas características do tipo legal tributário. (...)
  1. Demarcação conceptual do vocábulo “lançamento”

Esse dilema, “ato ou procedimento”, que pode se transformar num trilema: “ato ou procedimento, ou ambos”, reflete uma dúvida sem a solução da qual uma pesquisa mais séria ficaria sensivelmente prejudicada. Perante a Dogmática do Direito Administrativo, sabemos, essas entidades são diferentes e os efeitos práticos a que dão ensejo também apontam para direções distintas. (...). O mal está diagnosticado: “lançamento” é palavra que padece do problema semântico da ambiguidade, do tipo “processo/produto”, como tantas outras nos discursos prescritivo e descritivo do direito. É lançamento o processo de determinação do sujeito passivo e apuração da dívida tributária, como é lançamento, também, a norma individual e concreta, posta no sistema com a expedição do “ato de lançamento”. (...). Se pensarmos que ato e procedimento são signos distintos, com elaborações teóricas próprias, dentro do Direito Administrativo, importa muito conhecer esse aspecto para decidir qual a doutrina que vai ser aplicada às situações empíricas.
(...)
A Lei n. 5.172/66, no art. 142, inclinou-se decididamente pelo “processo”, enunciando, com expressividade, que “lançamento” é o procedimento administrativo tendente a verificar... Mas a doutrina vacilou, versando a figura ora como ato, ora como procedimento, ora como ambos.
Animada pelas elaborações continentais europeias, (...), que discutiam, calorosamente, acerca da eficácia declaratória ou constitutiva do lançamento, a doutrina brasileira ingressou no debate, inclinando-se, de modo entusiástico, pela primeira opção, o que importou relevar a plano secundário tema do mais elevado interesse científico, qual seja, o de determinar se o lançamento seria um mero ato jurídico administrativo ou, algo diferente, uma sequência procedimental, formada pela combinação orgânica de uma série de atos e termos, voltados para a produção de objetivo específico.(...).
É curioso notar que os principais autores do anteprojeto que se transformou na Lei n. 5.172/66 haviam manifestado opinião diversa, em trabalhos que antecederam a edição daquele Diploma.
(...).
Decididamente, é problemática a tese do lançamento como procedimento administrativo, lamentando-se que o legislador do Código haja inserido esse conceito no dispositivo do art. 142, agravando a incoerência com permitir que o agente público possa vir a propor a aplicação de penalidades, nas hipóteses de descumprimento das prestações tributárias. (...).
Há, ainda, uma outra dificuldade. Tanto a legislação como a doutrina utilizam a voz “procedimento” em duas acepções bem distintas: (1) “procedimento” como conjunto ordenado de atos administrativos e termos que evoluem, unitariamente, para a consecução de ato específico, que é sua finalidade (exemplos: procedimento administrativo tributário, procedimento de consulta, procedimento de licitação etc.); e (2) “procedimento” como qualquer atividade físico-material e intelectual para a produção de ato jurídico administrativo (exemplo: o funcionário, verificando o quadramento do fato à norma, redige breve autorização, num ato jurídico administrativo isolado).
Afirmei tratar-se de outra dificuldade porque há casos de lançamento em que o “procedimento” se reduz a um único ato. (...). Este ato pode verificar-se apenas com as providências físicas e mentais da autoridade competente, sem o concurso de qualquer outro ato administrativo.
Recomenda-se até, (...), que passemos a nos referir a “procedimento”, pura e simplesmente, nessa acepção mais livre e descomprometida, e reservando para as circunstâncias em que se cogita de uma sucessão de atos e termos, associados para se obter um determinado resultado, o mesmo nome, mas acompanhado da especificação: “procedimento de fiscalização”, “procedimento de inquérito administrativo”, “procedimento de discussão do lançamento perante os órgãos da Administração”, “procedimento de consulta” etc.
Para terminar este item do presente subcapítulo, vale a pena mostrar uma indicação objetiva, no mundo da praxis, que a distinção entre ato e procedimento oferece: (...), a vinculação que se predica diz respeito ao procedimento e não ao ato. O caráter de vinculado ou de discricionário mora na atividade procedimental, não no seu produto: o ato de lançamento. (...).
A solução estaria bem simplificada, se “ato” não sofresse, também, da mesma enfermidade semântica. O signo “ato” tanto representa o processo, a atividade, como seu resultado, seu produto. (...).
Como providência epistemológica de bom alcance, podemos tomar “procedimento” como atividade, como processo de preparação, e “ato” como o produto final, composto por enunciados de teor prescritivo, consubstanciados num documento que passa a integrar o sistema do direito positivo. (...). No ato, consoante a proposta semântica com que iremos trabalhar, não encontraremos mais do que as duas peças do enlace implicacional das normas jurídicas individuais e concretas: antecedente e consequente, com seus elementos constitutivos.
Não se exaure nessa polêmica (ato/procedimento) a tentativa da doutrina brasileira de conceituar o lançamento tributário. Para Alcides Jorge Costa12, (...), o lançamento deve ser considerado como um elemento da relação jurídico-tributária, expresso por ato administrativo.
Estamos em que, (...) um obstáculo difícil de ser transposto se entrepõe no curso dessa elaboração: a figura do ônus só tem cabimento na plataforma dos direitos disponíveis, e o lançamento é obrigatório e vinculado, sob pena de responsabilidade funcional do agente. Não vemos, portanto, em que medida se possa compaginar o cumprimento de um dever e a remoção de um óbice, representado pela existência de um ônus.
Não merece encômios de juridicidade, igualmente, a ideia de que o lançamento seria uma condição legal, que submeteria o nascimento ou a eficácia da obrigação tributária. (...). Sem o implemento da condição estipulada pelas partes, como acontecimento futuro e incerto, não haverá irradiação de efeitos jurídicos e o negócio será inapto para fazer surdir, por força própria, os direitos e deveres que lhe são peculiares. Processar-se-ia o mesmo fenômeno, na eventualidade de condição legal, apenas que a vontade das partes estaria substituída pela determinação da lei, ao fazer a previsão de evento futuro e incerto para submeter a eficácia do fato jurídico. (...).
Como a primeira, tal concepção tropeça em dificuldade fundamental. A condição ditada pela lei não é verdadeira conditio, pois, nos exatos termos do art. 121 do Código Civil brasileiro, considera-se condição apenas a cláusula que derive exclusivamente da vontade das partes.
(...). A chamada condição legal define tão somente os elementos que compõem o desenho descritivo do fato jurídico tributário. Sem eles, o próprio evento não se constitui. E Pontes de Miranda13 explicita: Se a circunstância incerta é elemento do chamado suporte fáctico “legal”, necessária é para que a eficácia se dê: a morte não é condição do testamento; é “conditio juris”; e as “conditiones juris”, segundo a técnica jurídica do art. 11714, não são condições.
Sendo assim, relatar o lançamento como condição legal que submete o nascimento da obrigação tributária poderia sugerir, (...), intuição de que o próprio factum estaria por requerer a linguagem como elemento indispensável à sua constitutividade e, por via de consequência, a instalação mesma da obrigação tributária. (...).
  1. Lançamento tributário: norma, procedimento e ato

A compreensão da figura do lançamento fica mais nítida quando refletimos sobre a convergência das palavras “norma”, “procedimento” e “ato”, tomadas como aspectos semânticos do mesmo objeto. Importa dizer, se nos detivermos na concepção de que o ato é, sempre, o resultado de um procedimento e que tanto ato quanto procedimento hão de estar, invariavelmente, previstos em normas do direito posto, torna-se intuitivo concluir que norma, procedimento e ato são momentos significativos de uma e somente uma realidade. (...).
Se transpusermos o raciocínio para a região das entidades jurídicas, direcionando-o ao campo que nos interessa, podemos aludir ao “lançamento”, concebido como norma, como procedimento ou como ato. Norma, no singular, para reduzir as complexidades de referência aos vários dispositivos que regulam o desdobramento procedimental para a produção do ato (i); procedimento, como a sucessão de atos praticados pela autoridade competente, na forma da lei (ii); e ato, como o resultado da atividade desenvolvida no curso do procedimento (iii). Isto significa afirmar que são semanticamente válidos os três ângulos de análise. Tanto será “lançamento” a norma do art. 142 do CTN, como a atividade dos agentes administrativos, desenvolvida na conformidade daquele preceito, como o documento que a atesta, por eles assinado, com a ciência do destinatário.(...). Uma coisa, porém, deve ficar bem clara: não pode haver ato de lançamento sem que o procedimento tenha sido implementado. Da mesma forma, não haverá ato nem procedimento sem que uma regra do direito positivo estabeleça os termos das respectivas configurações.
Sobre “ato”, utilizado neste texto como sinônimo de “ação”, algumas ponderações se tornam oportunas. Vêmo-lo como a significação de um movimento ou de um plexo deles, mas enquanto unidade de sentido que os tem por referente. (...). Lembremo-nos de que os atos meramente internos não têm relevância para o direito, todavia sim para a moral ou para a religião. Do ato puro de pensamento só tem consciência o sujeito pensante, o que também sucede com outros tipos de atos internos, (...). Ao dizer que os atos internos não ingressam na esfera de preocupação do direito, saliento que os eventos são objetos de percepção, permanecendo no âmbito da subjetividade de cada qual, até que, mediante a linguagem, venham a ser transmitidos para terceiros, no contexto social.
Por outro lado, continua aquele autor, há também atos que são meramente externos, sem abrigar elementos internos, como acontece com os atos reflexos, ou aqueles outros que uma pessoa realiza dormindo ou em estado de hipinose, ou ainda em todas aquelas situações em que o sujeito “não é dono de seus atos”.
Agora, “procedimento” é termo com outras projeções semânticas, para além daquela de “lançamento tributário”. Aproxima-se de “atividade”, que supõe pluralidade de atos, com habitualidade ou sem habitualidade, organizada no modo de conjuntos ou mediante ações desconexas, que se repetem irrefletidamente, escapando de nossas possibilidades de captação mental. (...), ali onde houver procedimento haverá sucessão organizada de ações, praticadas sequencialmente, com o escopo de atingir determinado resultado, de tal modo que é possível promover a decomposição analítica do todo, tendo em vista o exame pormenorizado de ato específico que, por qualquer razão, venha a nos interessar. Outro elemento importante para a compreensão da atividade procedimental é o tempo. A cronologia faz parte integrante da noção de procedimento, a tal ponto que, se não detectamos a presença do fator temporal, intrometido entre os atos, estaremos diante de ações simultâneas destituídas de sentido enquanto categoria definida de atuosidade. (...) O que pretendo significar, entretanto, é que no caso do procedimento, além do desdobrar-se no tempo, que é algo próprio desse tipo de atividade, o fluxo temporal se interpõe na sucessão organizada das ações praticadas, o que não ocorre com os atos. Há o tempo interno, digamos assim, e o tempo externo, que marca a duração do procedimento, vale dizer, seu início e seu término, que se dá com o aparecimento de qualquer um dos resultados previstos.
Quanto às normas, são enunciados de teor prescritivo que se projetam sobre a região material das condutas intersubjetivas, para discipliná-las, implementando os valores que a sociedade pretende ver realizados e, com isso, possibilitando o convívio social. (...). Dito de maneira mais lacônica e objetiva, no direito, toda a vida social, excluídas as manifestações meramente subjetivas, está contida na projeção semântica do sistema de normas.
É com esse tom que devemos recolher os significados das ações intersubjetivas para lidar com o “lançamento tributário”. Há unidades normativas que o mencionam, instituem o regime procedimental para sua produção e o contemplam como ato jurídico administrativo com funções relevantíssimas para que o Estado-Administração realize a missão constitucional que lhe foi atribuída.
Tratar o “lançamento” como norma, como procedimento ou como ato passa a ser, então, singela decisão de quem vá examiná-lo, valendo a asserção para o jurista prático e para o jurista teórico, tanto faz. Aquilo que não se justifica, sob o ponto de vista da Epistemologia do Direito, é o caráter emulativo que se difundiu pela doutrina, com a disputa entre a primazia das três possibilidades cognoscitivas.
  1. Lançamento e teoria dos atos administrativos

Não tivesse havido tanta hesitação a propósito da identidade do lançamento (ato ou procedimento), e as investigações científicas sobre esse ente do direito positivo teriam experimentado, há muito tempo, sensível progresso. Isso porque a teoria dos atos administrativos, tradicionalmente discutida, acha-se estruturada em bases sólidas, a despeito das dissenções acadêmicas que as construções da doutrina acabam sempre suscitando. (...)
Com efeito, a visualização jurídica do lançamento como ato administrativo abre perspectivas riquíssimas à pesquisa do assunto, possibilitando admirável ingresso nas profundezas do instituto, campo em que o cientista descobrirá, certamente, caminhos novos para a solução das intermináveis testilhas acadêmicas que vêm afligindo tributaristas nacionais, impotentes ante a necessidade de narrar algumas das consequências práticas que o lançamento produz.
É o que nos propomos fazer: empregar a teoria dos atos administrativos para surpreender a entidade “lançamento”. (...).
(...).
  1. Definição de lançamento tributário

Lançamento tributário é o ato jurídico administrativo, da categoria dos simples, constitutivos e vinculados, mediante o qual se insere na ordem jurídica brasileira uma norma individual e concreta, que tem como antecedente o fato jurídico tributário e, como consequente, a formalização do vínculo obrigacional, pela individualização dos sujeitos ativo e passivo, a determinação do objeto da prestação, formado pela base de cálculo e correspondente alíquota, bem como pelo estabelecimento dos termos espaço-temporais em que o crédito há de ser exigido.
a) Ato jurídico administrativo
Lançamento é ato jurídico e não procedimento, como expressamente consigna o art. 142 do Código Tributário Nacional. Consiste, muitas vezes, no resultado de um procedimento, mas com ele não se confunde. É preciso dizer que o procedimento não é imprescindível para o lançamento, que pode consubstanciar ato isolado, independente de qualquer outro. Quando muito, o procedimento antecede e prepara a formação do ato, não integrando com seus pressupostos estruturais, que somente nele estarão contidos.
(...).
Mas, ao acolhermos o lançamento como ato jurídico administrativo, vem ao pensamento distinção de relevo, que M. Seabra Fagundes15 expõe com muita nitidez, ao lembrar que os atos administrativos podem ser ou não jurídicos. (...).
A lição do preclaro jurista sugere o emprego cuidadoso da expressão ato jurídico administrativo para aludir aos atos jurídicos praticados pela Administração Pública, no exercício da função administrativa. É o caso do lançamento, com seus indiscutíveis efeitos de direito.
Assentadas essas posições, quais seriam, para a corrente convencional dos nossos autores, os traços de identificação do ato jurídico administrativo, mantendo-se a premissa de que o lançamento seria uma espécie dessa categoria?
No ato jurídico administrativo encontramos os requisitos de essência do gênero atos jurídicos, (...). Haverá, dessa forma, cinco elementos integrativos na estrutura interior de todo ato jurídico administrativo: a) motivo ou pressuposto; b) agente competente; c) forma prescrita em lei; d) objeto ou conteúdo; e e) finalidade.
Atente-se para que a capacidade do agente se presume, em direito público, assumindo conotação específica, expressa na regra da competência, (...).
Também quanto ao objeto, não se pode adotar, sem a devida reserva, o requisito genérico dos atos jurídicos. (...). Nos atos vinculados, o objeto estará determinado no preceito legal, enquanto nos atos de competência discricionária deverá quadrar-se nos limites legais da liberdade apreciativa outorgada à Administração.
Tornam-se imprescindíveis tais adaptações ao reconhecimento da intimidade estrutural dos atos jurídicos administrativos que, além disso, reivindicam dois outros elementos para completar sua existência: motivo ou pressuposto e finalidade.
O motivo está atrelado aos fundamentos que ensejaram a celebração do ato. Pode vir expresso em lei ou ficar a critério do administrador. Tratar-se-á, então, de ato vinculado ou discricionário, segundo a hipótese. (...).
A finalidade é o objetivo que se pretende com a celebração do ato ou o resultado prático que se procura alcançar pela modificação trazida à ordem jurídica. (...).
Simultaneamente agrupados os cinco elementos que lhe dão substância, estaremos diante de um ato jurídico administrativo, na sua completude existencial. Contudo, nem todo ato jurídico administrativo realiza a figura típica do lançamento tributário, porque outras estipulações singulares estão alojadas no seu conceito.
b) Da categoria dos simples, constitutivos ou modificativos e vinculados
Atos jurídicos administrativos simples são aqueles que resultam da emanação de vontade de um único órgão ou, (...) os atos que se completam pela manifestação de uma só vontade, e produzem as suas consequências jurídicas independentemente da manifestação de outra vontade. (...). O ato jurídico administrativo do lançamento tributário estaria contido na primeira espécie: ato simples individual.
Tendo em vista o critério do fim imediato a que se preordenam os atos, Ruy Cirne Lima16 os classifica em cinco grupos: constitutivos, assecuratórios, alienativos, modificativos e extintivos de direitos.
Os constitutivos carregam a premissa da criação de relações jurídicas novas, (...). E quando cabe ao Fisco, em caráter inaugural, montar a linguagem competente, será ele constitutivo, tanto do fato jurídico tributário como da obrigação que se irradia pelo liame lógico da imputação normativa (“causalidade jurídica”, na terminologia de Lourival Vilanova).
Acontece, porém, que o lançamento é lavrado, muitas vezes, em substituição àquele ato de linguagem emitido com deficiência pelo sujeito passivo, no exercício de competência legal. Sempre que isso ocorrer, não havendo o traço inovador referido acima, apresentar-se-á como ato modificativo. (...).
(...).
O tema do aspecto constitutivo ou modificativo de que se reveste o lançamento dá margem a uma série de comentários, uma vez que vem ocupando espaço significativo no corpo da doutrina especializada. (...).
O ato jurídico administrativo do lançamento é vinculado, significando afirmar que se coloca entre aqueles para a celebração dos quais não atua o agente com qualquer grau de subjetividade. (...). Pelo contrário, o representante do Poder Público, nos atos vinculados, há de pautar sua atuação nos estritos termos que a lei estipula, guardando-lhe plena e integral aderência. Exatamente assim o ato de lançamento tributário, onde não se permite atuação discricionária. Declara-o, prescritivamente, o art. 142 do Código Tributário Nacional, e o sistema do direito positivo o confirma.

c) Mediante o qual se insere na ordem jurídica brasileira uma norma individual e concreta

Eis o conteúdo ou objeto do ato jurídico administrativo do lançamento tributário: introduzir no ordenamento positivo uma norma individual e concreta que guarde subsunção à regra-matriz de incidência, isto é, à norma geral e abstrata instituidora do gravame.
Com efeito, sem norma individual e concreta as prescrições gerais e abstratas não chegam às condutas intersubjetivas, e o direito não atinge seus propósitos reguladores. Torna-se preciso, como vimos na teoria das fontes, que um veículo introdutor (ato jurídico-administrativo do lançamento, no caso) faça a inserção da regra no sistema. (...).
Intuitivamente, os estudiosos não se esquivaram de identificar essa norma introduzida com a própria substância da norma introdutora, chamando-a de conteúdo ou objeto. Implica reconhecer que, sem tal núcleo de significação, o veículo introdutor fica oco, vazio, perdendo o sentido de sua existência.

d) Que tem como antecedente o fato jurídico tributário

O ato jurídico administrativo de lançamento deve trazer alusão a um fato, equivale a dizer, a um enunciado protocolar, denotativo, referente a alteração do mundo econômico-social, devidamente individualizada no espaço e no tempo, com o verbo no pretérito. E mais: que satisfaça os padrões do antecedente de regra-matriz de incidência tributária. (...).
A menção ao aspecto é algo imprescindível, dado que o enunciado empregado para relatar o evento é pressuposto do nascimento do nexo jurídico tributário e, por via de consequência, do direito subjetivo à percepção do tributo. Consubstancia o que os administrativistas chamam de motivo ou pressuposto, que no campo das competências vinculadas deverá vir sempre expresso para propiciar o cotejo de sua identidade com o tipo legal. Por isso mesmo, não há como dispensar a autoridade lançadora de registrar, na edição do ato, o motivo que lhe deu ensejo, corresponde a dizer, a referência objetiva do fato jurídico tributário, reportando-se, como já foi dito, às coordenadas de tempo e de espaço que o condicionaram no mundo da experiência físico-social.

e) E, como consequente, a formalização do vínculo obrigacional, pela individualização dos sujeitos ativo e passivo e pela determinação do objeto da prestação, formado pela base de cálculo e alíquota correspondente

Bem, constituído o fato-causa (fato tributário), a consequência será a instauração do fato-efeito (a obrigação tributária), por força da relação de causalidade jurídica (imputação normativa). Requer-se, porém, que o vínculo obrigacional apareça objetivado, (...), o que só é possível pela comunicação entre sujeitos, promovida pela linguagem. (...) a linguagem competente, assim indicada pelo direito positivo em vigor.
Realmente, para que se dê por instalada a relação jurídica do tributo faz-se necessário utilizar as formas de linguagem previstas na legislação, indicando os sujeitos do vínculo (ativo e passivo), determinando a base de cálculo (grandeza apta para dimensionar as proporções jurídicas do fato), bem como apontando para a alíquota que há de conjugar-se com a matéria imponível, para compor o quantum debeatur. (...)..
Quanto ao sujeito ativo, (...), como a pessoa política de direito constitucional interno portadora da competência para editar as normas do tributo. Algumas vezes, no entanto, sempre que houver o fenômeno da parafiscalidade, o sujeito pretensor comparecerá explicitamente, como aquela pessoa jurídica de direito público ou privado nomeada pelo titular da competência para fazer as vezes de credor. No que diz respeito ao sujeito passivo, todavia, a formalização do laço obrigacional compele a autoridade a identificá-lo com rigor, enunciando-lhe o nome (pessoa física ou jurídica), seu domicílio, assim como os dados de seu registro ou inscrição, segundo os controles do órgão fiscal.
Por outro lado, a determinação da base de cálculo e da alíquota aplicável são atividades jurídicas imprescindíveis à operação material que define a compostura numérica do crédito tributário. (...).
Bem, se atinarmos à circunstância de que, até esse momento, a autoridade administrativa nada mais fez do que analisar o fato concreto, confrontando-o com os preceptivos legais, teremos de admitir a existência de uma atividade jurídica, de teor interpretativo, para efeito da aplicação do direito posto às realidades que a ele se conformam. Contudo, não é suficiente a singela determinação da base de cálculo e da alíquota para a composição monetária do crédito. Atividades que tais são pressupostos de outra, que chamamos de material, mas que igualmente se desenvolve sob os ditames da lei: a operação matemática cujo resultado é obtido pela conjugação da base de cálculo e da alíquota. Esse resultado precisará a importância correspondente ao crédito tributário.
Resumimos, para deixar patente que o lançamento tributário tomado como ato jurídico administrativo que põe no ordenamento uma norma individual e concreta, tem no antecedente, o relato do evento tributário, estabelecendo-o como fato; no consequente, a prescrição do vínculo que nasce unindo dois sujeitos em torno de uma prestação pecuniária. Visto na sua integridade, apresenta caráter declaratório do fato e constitutivo da relação, ainda que possamos rematar que o “declaratório do fato” representa sua própria composição no plano das objetividades, aparecendo exatamente assim para o conhecimento jurídico.

f) Bem como pelo estabelecimento dos termos espaço-temporais em que o crédito há de ser exigido

Se, por acaso, não fossem imprescindíveis à configuração do crédito tributário a declaração do acontecimento factual, a identificação do sujeito passivo da obrigação correspondente e a determinação da base de cálculo e da alíquota aplicável, com a consequente formalização do crédito tributário, e diríamos, (..), que estipular os termos da exigibilidade seria a mais relevante função do ato de lançamento.
(...).
De que serviria a formalização do crédito se o destinatário da notificação de lançamento não pudesse conhecer o momento ou o prazo em que deve fazer cumprir a prestação? Em que átimo reputar-se-ia descumprido o dever pecuniário? Em que instante surgiria para o sujeito ativo a possibilidade de invocar a prestação jurisdicional do Estado, para ver respeitado seu direito subjetivo? (...). E o lapso de tempo vem demarcado pela menção (...) ao termo inicial e ao termo final.
E tão grande é o teor de relevância dos termos da exigibilidade que o termo final é o marco, a partir do qual se dá por descumprida a prestação, abrindo-se espaço à incidência dos dispositivos sancionatórios que as normas tributárias associam ao desrespeito de suas obrigações.
(...).
Termo é determinação temporal inexa, usando a terminologia sempre original de Pontes de Miranda. Os termos, juntamente com as condições, inexam-se às manifestações de vontade, para que o efeito ou os efeitos dos atos jurídicos somente durem até que acontecimento futuro e certo se dê (termo final)17.
Essa determinação inexa não pode deixar de figurar no ato jurídico administrativo do lançamento, proposição que estimamos do maior interesse e sobre a qual vale insistir a cada passo.
  1. As cláusulas de definição satisfazendo a estrutura do ato

A definição do conceito de lançamento, tal qual a expusemos, preenche inteiramente os elementos estruturais do ato jurídico administrativo, segundo a teoria tradicional. Vejamos: a) O motivo ou pressuposto é a realização do evento, do qual tem notícia o agente da Administração. (...). b) O agente competente é o funcionário que a lei indicar para o exercício de tal função, dependendo de cada espécie legislada. c) A forma é a organização de linguagem que a lei entendeu adequada para o tributo, variando, também, caso a caso. d) Conteúdo ou objeto é a norma individual e concreta inserida no sistema pelo ato de lançamento. e) E finalidade é o objetivo colimado pelo expediente, qual seja o de, introduzindo a norma no ordenamento positivo, tornar juridicamente possível o exercício do direito subjetivo à prestação tributária.
Submetendo-se agora o ato que acabamos de definir às categorias do pensamento de Celso Antônio Bandeira de Mello, teremos, igualmente, quadramento satisfatório. (...). Para o publicista, compõem a intimidade do ato tão somente dois elementos: conteúdo e forma18. (...).
Além do conteúdo e da forma, elementos necessários à existência jurídica do ato, faz menção a seis pressupostos que permitem analisá-lo no âmbito de sua validade. São eles: a) o pressuposto objetivo (...); b) o pressuposto subjetivo (...); c) o pressuposto teleológico (...); d) o pressuposto procedimental (...); e) o pressuposto causal (...), f) o pressuposto formalístico, quer dizer, o modo específico estabelecido para sua exteriorização ou as singularidades formais que o ato deve revestir.
(...). O conteúdo do lançamento é a norma individual e concreta que ele introduz no sistema, significa afirmar, o enunciado factual (“fato gerador”), no tópico de antecedente, e a relação jurídica tributária, com seus sujeitos e seu objeto (base de cálculo e alíquota), na posição sintática de consequente. A forma é a escrita, outro modo de referência à linguagem como instrumento da comunicação jurídica. Sem linguagem não haverá ato.
À busca de subsunção da figura do lançamento às lições do ilustre professor da PUC/SP, teríamos como pressupostos do lançamento:
a) Objetivo — o motivo da celebração do ato é a ocorrência do evento descrito no suposto da regra-matriz. (...).
b) Subjetivo — a autoridade lançadora cuja competência está definida em lei.
c) Teleológico — a finalidade do ato de lançamento é, como se disse, tornar possível exigir, juridicamente, a prestação do tributo.
d) Procedimental — se bem que não ocorra em alguns casos, deve ser observado sempre que a lei assim o dispuser. São aqueles atos chamados preparatórios, cometidos ao Poder Público ou ao próprio particular e tidos como necessários à lavratura do lançamento.
e) Causal — na hipótese do lançamento é o nexo lógico que há de existir entre o suceder do evento jurídico (motivo), a atribuição desse evento a certa pessoa, bem como a mensuração do acontecimento típico (conteúdo), tudo em função da finalidade, qual seja o exercício possível do direito de o Estado exigir o quantum do tributo.
f) Formalístico — está devidamente consignado em cada uma das legislações dos diversos tributos. Cada qual tem suas particularidades, variando na consonância da espécie de exação (vinculada ou não vinculada) e, ainda mais, em função de suas subespécies.
Em esforço de prova, procuramos justificar a proposição científica de que o lançamento é um ato jurídico administrativo, que pode ser visto tanto pela óptica tradicional como pela contribuição científica de Celso Antônio Bandeira de Mello. (...).
  1. A norma jurídica do ato de lançamento e a norma que figura como seu conteúdo

Numa visão exclusivamente normativa, façamos desde logo a distinção entre a norma consubstanciada pelo ato administrativo de lançamento tributário e aquel’outra posta como seu conteúdo ou objeto.
A norma que configura o ato ou a regra de conduta que o expediente visa a inserir no sistema tem feições internas diversas: enquanto a de lançamento é concreta e geral, a que reside em seu conteúdo é concreta, mas individual. A primeira, tem como suposto ou antecedente um acontecimento devidamente demarcado no espaço e no tempo, identificada a autoridade que a expediu. (...). A verdade é que a hipótese dessa norma alude a um fato efetivamente acontecido. Já o consequente revela o exercício de conduta autorizada a certo e determinado sujeito de direitos e que se pretende respeitada por todos os demais da comunidade. Nesse sentido é geral.
(...)
Vale a pena reiterar que os veículos introdutores de normas no sistema são, também, normas jurídicas, mas sempre gerais e concretas. Sua importância, em termos sistemáticos, aloja-se em dois pontos: a) são os instrumentos apropriados para inserir regras jurídicas no sistema positivo; e, além disso, b) funcionam como referencial para montar a hierarquia do conjunto. (...). Se o direito é tomado como conjunto de normas válidas, num determinado território e num preciso momento do tempo histórico, tudo dentro dele serão normas, em homenagem ao princípio epistemológico da uniformidade do objeto. (...)..
  1. O velho problema da natureza declaratória ou constitutiva do lançamento tributário

Não foram poucos os que deram por superada a testilha acadêmica sobre a natureza do lançamento, com a vitória contundente da tese declarativista.(...).
Nada obstante, já deixamos assentado que tudo depende do sistema de referência, do modelo com que o cientista opera as categorias do direito. As proposições teoréticas derivadas hão de guardar coerência com as premissas eleitas e, deslocando-se o ângulo de análise, muitas vezes mexemos com as premissas, de tal modo que as proposições originárias poderão tornar-se diferentes, possibilitando uma revisão substanciosa nas conclusões até então obtidas. E é exatamente o que acontece com a temática que estamos versando.
(...)
Pudemos verificar que o fato jurídico tributário é constituído por um enunciado protocolar, denotativo, relatando um evento pretérito que se consolidou numa unidade de tempo e num ponto do espaço social. (...). Os valores lógicos a que está submetido, por isso mesmo, são os da Lógica Deôntico-Jurídica (válido ou não válido), nunca os da Lógica Alética (verdadeiro ou falso).
(...). Seu conteúdo semântico será o relato de um evento do passado, devidamente caracterizado no tempo e no espaço. (...). Nesse sentido, vale dizer que o fato jurídico tributário tem caráter declaratório. Aí está o motivo pelo qual se aplica ao fato a legislação em vigor no momento em que o evento ocorreu. Entretanto, não podemos esquecer que o relato do acontecimento pretérito é exatamente o modo como se constitui o fato, como essa entidade aparece e é recebida no recinto do direito, o que nos autoriza a proclamá-lo como constitutivo do evento que, sem esse relato, quedaria à margem do universo jurídico. (...). Retenhamos esses dois aspectos: o enunciado do antecedente da norma individual e concreta que analisamos se constitui como fato ao descrever o evento.
(...). Diferentemente do fato, que recua no tempo para surpreender o evento, o enunciado relacional institui uma relação jurídica de cunho patrimonial, perfeitamente individualizada quanto aos termos-sujeitos (ativo e passivo) e quanto à conduta-prestação, que é seu objeto. (...).
Ora, sabemos que o consequente da norma individual e concreta é o efeito jurídico próprio do acontecimento fáctico previsto no antecedente. É a chamada eficácia jurídica do fato, instalando-se, (...). Não há intervalo qualquer entre o fato jurídico e a relação jurídica que, por virtude dele, fato, se instaura. A sucessão não é cronológica; é simplesmente lógica. Disso, advém uma conclusão importante: todos os elementos utilizados para a composição do enunciado relacional são extraídos do fato e não do evento, que já se consumiu ao transformar-se no enunciado do antecedente normativo. (...). Só numa formulação apressada poderíamos supor que o autor da regra volta ao passado para vasculhar a ocorrência e dela extrair ingredientes que venha a utilizar na relação obrigacional. (...). Todas as informações necessárias à compostura do liame obrigacional do consequente serão recolhidas ao lado, na linguagem do antecedente. (...) Não se pode menos do que concluir, de modo peremptório, que o consequente é, todo ele, constitutivo de um vínculo que passou a existir, para o direito, com o correspondente enunciado relacional.
(...). Tanto o antecedente como o consequente das normas jurídicas são igualmente importantes, porque, sem eles, não há regra de direito. A decomposição é um imperativo da postura analítica de quem se propõe investigar com maior profundidade o fenômeno que observa. (...). Sobre tais fundamentos, e com as ressalvas iniciais, é no consequente que estaria a tônica do direito, já que é por meio dele que o direito persegue suas finalidades precípuas.
Pensando assim, a natureza da norma individual e concreta, veiculada pelo ato de lançamento tributário, ou pelo ato produzido pelo sujeito passivo para apurar seu débito, nos casos estabelecidos em lei, assumirá a feição significativa de providência constitutiva de direitos e deveres subjetivos.
Até porque, se pensarmos bem, que haveria anteriormente à edição dessas normas individuais e concretas? De quem exigiria o Estado-administração o cumprimento da dívida tributária? Qual seria o montante do débito? Por que motivo haveria a cobrança? E em que condições o devedor poderia implementar sua “obrigação”? É sumamente curioso verificar que absolutamente nenhuma dessas perguntas encontrará resposta adequada, que não seja esta: tudo dependerá da norma individual e concreta, seja ela praticada pelo Poder Público (lançamento), seja realizada pelo particular. (...).
Amílcar de Araújo Falcão19 expõe sete índices (a, b, c, d, e, f, g) “concludentes” da eficácia declaratória do lançamento. Todos eles mostrando a retro-operação à data do evento para efeito de pesquisa e determinação dos elementos com base nos quais será fixado o an, o si e o quantum debeatur. O saudoso professor, (...), parte de outros pressupostos, quais sejam o da ocorrência do “fato gerador” e o do nascimento da relação jurídica tributária para, depois, advir o ato de lançamento, declarando aqueles sucessos e, neles, buscando as informações necessárias à formalização do vínculo obrigacional. (...).
Américo Lacombe20 abraça a tese constitutiva, mas constitutiva da obligatio, pois adota a posição dualista da obrigação. Há mais de duas décadas, entretanto, vem trabalhando o lançamento como ato administrativo introdutor de norma individual e concreta, ao lado de José Souto Maior Borges. De minha parte, porém, fincado em outras premissas, como já ficou sobejamente esclarecido, não vejo como é possível dizer-se existente um fato jurídico, relacional ou não, sem manifestação adequada em linguagem competente. Tenho procurado, incessantemente, no plano da experiência jurídica brasileira, sem o menor sinal de sua existência. Seria o “fato gerador”, enquanto evento, o único? Decididamente, não posso acreditar.
  1. Sobre o conteúdo do ato de lançamento

O ato jurídico administrativo de lançamento é ponente de uma norma individual e concreta no sistema do direito positivo, funcionando como veículo introdutor. O conteúdo do ato é a própria norma que, por sua vez, tem também seu conteúdo, que consiste em indicar o fato jurídico tributário, cujas notas se subsumem aos critérios da regra-matriz de incidência, bem como instituir a obrigação tributária, tomada, neste passo, como equivalente nominal de relação jurídica de caráter patrimonial.
O assunto terminaria por aqui, não fosse a orientação de outros sistemas positivos, no sentido de considerar ato de lançamento tributário decisões administrativas ou judiciais que declaram a inocorrência do fato imponível e, como resultado, a inexistência de relação jurídica de tributo.
Os países que seguiram o Modelo de Código Tributário para a América Latina, entre eles o Uruguai, aceitam a declaração de inexistência como lançamento. Não é, todavia, o caso do direito brasileiro. Ato dessa natureza, dizendo exatamente que não aconteceu o evento, estaria constituindo, por oposição, a negativa do fato jurídico tributário que, como é evidente, não poderia irradiar efeitos nesse campo. Há de valer como ato administrativo ou como ato jurisdicional, suscitando eficácia inclusive para desconstituir outras manifestações administrativas ou judiciais, contudo sem revestir as características jurídicas de lançamento tributário.
  1. Os tributos do ato jurídico administrativo de lançamento

Quatro são os qualificativos tradicionalmente postos pelos administrativistas, como predicados que podem acompanhar, isolada ou conjuntamente, a expedição dos atos administrativos pelo Poder Público: a) presunção de legitimidade, b) exigibilidade, c) imperatividade e d) executoriedade.
Vejamos quais deles são atributos do ato de lançamento tributário.
a) A presunção de legitimidade está presente em todos os atos praticados pela Administração e, certamente, também qualifica o lançamento. Dado a conhecer ao sujeito passivo, será tido como autêntico e válido, até que se prove o contrário, operando em seu benefício a presunção juris tantum. (...).
b) A exigibilidade é outro predicado que inere ao ato de lançamento tributário. Intimado o administrado do seu teor, o crédito nele formalizado passa a ser exigível em termos administrativos, nesse sentido diligenciando as autoridades fazendárias. Se o contribuinte não satisfizer a prestação, nos limites e nas condições estipuladas no próprio ato, investe-se a entidade tributante da competência para lavrar outro ato jurídico administrativo, de caráter sancionatório, exarando norma, também individual e concreta, que terá como antecedente a descrição da conduta delituosa (infração) e, como consequente, a estatuição de vínculo obrigacional, em que o sujeito ativo reivindica certo valor pecuniário, a título de multa.
Entretanto, se o lançamento desfruta das prerrogativas de presunção de legitimidade e de exigibilidade, o mesmo não acontece com as duas outras propriedades: imperatividade e executoriedade.
c) Entende-se por imperatividade a iniciativa do Poder Público de editar provimentos que, interferindo na esfera jurídica do particular, constituam obrigações, de modo unilateral. Essa virtude, entretanto, o lançamento não tem. (...).
d) E menos ainda a executoriedade. Se o lançamento tributário fosse portador desse atributo, a Fazenda Pública, sobre exigir seu crédito, teria meios de promover a execução patrimonial do obrigado, com seus próprios recursos, compelindo-o materialmente. E o lançamento dista de ser ato dotado dessa qualidade constrangedora. Não satisfeita a prestação, em tempo hábil, a Administração aplicará a penalidade prevista em lei. Se vencido o prazo para recolhimento do tributo e da multa correspondente sem que o sujeito passivo compareça para solver o débito, a entidade tributante não terá outro caminho senão recorrer ao Poder Judiciário, para lá deduzir sua pretensão impositiva.(...).

1 Teoría de la accion comunicativa: complementos y estudios previos, Ediciones Catedra, 1994, p. 117
2 Teoría de la argumentación jurídica, Centro de Estudios Constitucionales, 1989, p. 111.
3 Introdução ao estudo do direito, Atlas, 1991, p. 253.
4 Introdução, cit., p. 253.
5 Funções da linguagem, Ática, 1991, p. 14.
6 Programa de direito civil, Parte Geral, 4. tir., Rio de Janeiro, Editora Rio, p. 184.
7 O problema do objeto da teoria geral do Estado, Universidade Federal de Pernambuco, 1953, p. 202.
8 Lançamento tributário, cit., p. 124-6.
9 Tensão entre direito de tributar e poder de tributar no direito tributário brasileiro, in Direito tributário — Estudos em homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira, Saraiva, 1984, p. 203-18.
10 Curso de direito administrativo, Malheiros Ed., 1994, p. 135.
11 Curso de direito administrativo, Malheiros Ed., 1993, p. 203.
12 Contribuição ao estudo da obrigação tributária, p. 57 e 60 (Tese de doutoramento – USP).
13 Tratado de direito privado, v. 5, p. 112.
14 Na atual redação do Código Civil brasileiro, o assunto é disciplinado pelo art. 121.
15 O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, 4. ed., Forense, 1967, p. 37.
16 Princípios de direito, cit., p. 73-4.
17 Pontes de Miranda, Tratado, cit., v. 5, p. 97.
18 Celso Antônio Bandeira de Mello, Elementos de direito administrativo, Revista dos Tribunais, 1980, p. 42.
19 Fato gerador da obrigação tributária, cit., p. 115-7.
20 Obrigação tributária, Revista dos Tribunais, 19977, 71-4






Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe aqui seu comentário!