terça-feira, 21 de abril de 2015

O Bem de Família


(Fichamento Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, 2011)

1.1 O bem de família consubstanciando a teoria do patrimônio mínimo da pessoa humana (direito a mínimo existencial)

Historicamente, o Direito Civil foi enxergado com a ótica da orientação liberal predominante na Revolução Francesa, fulcrando sua base sólida na proteção patrimonial. Exemplo nítido é a proteção à propriedade privada e à obrigatoriedade do cumprimento dos contratos, sedimentada no velho pacta sunt servanda. 
 
Em outras palavras, a partir dos novos valores que permeiam a ordem jurídica brasileira, a partir da legalidade constitucional, é imperioso despatrimonializar as relações jurídicas, sendo mister afirmar o ser sobrepujando o ter.

Enfim, relacionando a garantia de um mínimo patrimonial à dignidade da pessoa humana, percebe-se o objetivo almejado pela Constituição da República no sentido de garantir a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais, funcionalizando o patrimônio como um verdadeiro instrumento de cidadania e justificando a separação de uma parcela essencial, básica, do patrimônio para atender às necessidades elementares da pessoa humana. 
 
E o exemplo mais contundente da proteção ao patrimônio mínimo da pessoa humana é, sem dúvida, a proteção ao bem de família (Lei no 8.009/ 90 e CC, arts. 1.711 a 1.722). 
 

1.2 O bem de família no direito brasileiro

1.2.1 A dualidade de regimes

O nosso ordenamento jurídico, seguindo tendência universal, não admite a responsabilização pessoal do devedor por suas dívidas, apenas vinculando o seu patrimônio – princípio da responsabilidade patrimonial, consagrado no art. 591 do Código de Processo Civil e no art. 391 do Código Civil. Assim, embora o devedor assuma suas obrigações pessoalmente, responde por elas, apenas, com o seu patrimônio, presente e futuro. 
 
Tal regra, no entanto, comporta exceções, havendo bens que são excluídos do cumprimento das obrigações. Assim, além de alguns bens excepcionados pela legislação processual (vide, a respeito, o art. 649 do Código Instrumental), também está livre de penhora o bem de família, disciplinado nos arts. 1.711 a 1.722 da Lei Civil, bem como na Lei no 8.009/90. 
 
A importância da proteção do bem que serve de abrigo, de lar, à pessoa humana é incontroversa. Sob o prisma psicológico e cultural, é legítimo e natural o anseio da generalidade das pessoas em obter a casa própria, por “despertar a segurança psicológica da certeza do abrigo”, além de refletir maior proteção patrimonial, (...).

O ordenamento jurídico brasileiro admite duas modalidades de bem de família: i) o bem de família convencional, disciplinado pelo Código Civil nos arts. 1.711 a 1.722; ii) o bem de família legal ou obrigatório, tratado na Lei nº 8.009/90. 
 

1.2.2 O valor família

Os novos valores que inspiram a sociedade contemporânea sobrepujam e rompem, definitivamente, com a concepção tradicional de família. A arquitetura da sociedade moderna impõe um modelo familiar descentralizado, democrático, igualitário e desmatrimonializado. O escopo precípuo da família passa a ser a solidariedade social e demais condições necessárias ao aperfeiçoamento e progresso humano, regido o núcleo familiar pelo afeto, como mola propulsora. 
 
A proteção ao núcleo familiar deverá estar atrelada, necessariamente, à tutela da pessoa humana, através dos (democráticos) princípios gerais da Carta Maior. 
 
Desnivelar a proteção da pessoa humana, sob o argumento de proteger a instituição familiar é cometer gravíssima subversão hermenêutica, violando frontalmente o comando constitucional! 
 
Nesse diapasão, vale invocar o brilhante voto (embora vencido naquela oportunidade) do Ministro Fontes de Alencar, em julgamento no Superior Tribunal de Justiça, acolhendo tais argumentos: “Quanto ao funda-mento do acórdão de que ela é solteira e, em consequência, não atingida pela benesse da Lei 8.009/90, data venia, afasto-o, porque senão chegaríamos à suprema injustiça. Se o cidadão fosse casado, ainda que mal casado, faria jus ao benefício; se fosse viúvo, sofrendo a dor da viuvez, não teria direito ao benefício. Rogo vênia a V. Exa. para não restringir esse conceito de família a tão pouco” .

1.2.3 Natureza jurídica do bem de família

Apesar de intensas discussões acerca da matéria, tem-se, hodiernamente, que a natureza jurídica do bem de família é de forma de afetação de bens a um destino especial, qual seja, assegurar a dignidade humana dos componentes do núcleo familiar.

Isto é, protege-se o bem que abriga a família com o escopo de garantir a sua sobrevivência digna, reconhecida a necessidade de um mínimo existencial de patrimônio, para a realização da justiça social. 
 

1.3 O bem de família convencional

1.3.1 Noções conceituais

Inserido topologicamente no Livro da Parte Geral, a partir do art. 70 do Código Civil de 1916, o bem de família era compreendido como “o prédio destinado pelos chefes de família ao exclusivo domicílio desta, mediante especialização no Registro Imobiliário, consagrando-lhe uma impenhorabilidade limitada e inalienabilidade relativa”. 
 
O Código Civil, atualizando conceitualmente o bem de família aos avanços determinados pela Constituição Federal de 1988, permitiu a sua instituição não apenas pelo marido, embora tenha mantido a voluntariedade na sua constituição. Outrossim, deslocou a disciplina do instituto para o Livro do Direito de Família. Assim, o conceito de família para os fins de constituição do bem de família abrange, também, a união estável, a família monoparental e outras formas de constituição de núcleos básicos, em razão do novo espectro e alcance do conceito de entidade familiar, apresentado pela Constituição da República, em seu art. 226. 
 
(…) Aqui, somente é possível a penhora do bem de família, exclusivamente, em casos de tributo devido em razão do próprio bem (IPTU, por exemplo) ou dívidas de condomínio. No bem de família legal as hipóteses são mais amplas, em número de sete (inclusive as duas antes referidas), mencionadas no art. 3o da Lei no 8.009/90. 
 
Ainda em relação ao Codex, a partir do art. 1.711, é possível extrair o seguinte regramento para o bem de família convencional:
i) impossibilidade de ter o prédio destino diferente, nem mesmo podendo ser alienado sem consentimento de todos os interessados (inclusive filhos);
ii) instituição mediante testamento ou escritura pública, constituindo- se pelo registro de seu título no Cartório de Imóveis;
iii) a fração do patrimônio destinado à instituição do bem de família não pode ultrapassar o montante de um terço do patrimônio líquido do instituidor, existente ao tempo da instituição. 
 

1.3.2 Extensão da proteção

É lícito afirmar, a partir da intelecção do bem de família voluntário, instituído por meio de registro no Cartório de Imóveis (CC, art. 1.714), que os seus efeitos são a impenhorabilidade e a inalienabilidade. (...) e atingem não apenas o imóvel, rural ou urbano, que serve de residência, mas, por igual, suas pertenças e acessórios (CC, art. 1.712). 
 
A novidade fica por conta da possibilidade de inserir, na constituição do bem de família, cláusula pela qual a proteção venha a abranger, também, valores mobiliários cuja renda venha a ser aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família, desde que não excedentes ao valor do próprio prédio instituído, à época de sua instituição (CC, arts. 1.712 e 1.713). 
 
(…) Em outras palavras, o bem de família instituído voluntariamente não pode ter valor superior a um terço do patrimônio líquido do instituidor, no momento da sua estipulação. Excedida tal limitação, não produzirá efeitos a instituição, podendo o bem ficar submetido à proteção da Lei do bem de família involuntário, se servir como residência do núcleo familiar. 
 

1.3.3 Exceções à regra da impenhorabilidade do bem de família voluntário

Existem algumas exceções à regra de que o bem de família voluntário é impenhorável, estando elencadas no art. 1.715 da Codificação Reale. 
 
Deste modo, é possível penhorar o bem de família instituído pelos titulares para o pagamento de dívidas oriundas de tributos relativos ao próprio prédio (como o IPTU ou o ITR) ou ainda de despesas condominiais. (…)

Vale o registro de que outras exceções, previstas no art. 3o da Lei noº 8.009/90 são exclusivamente incidentes no regime do bem de família legal, não se aplicando à sistemática do bem de família convencional, que, por sua vez, somente admite temperamentos nos dois únicos casos aqui registrados, decorrentes do art. 1.715 da Lei Civil. 
 

1.3.4 Legitimação para a instituição do bem de família convencional

Coadunando-se com a Magna Carta, o Código Civil permite, e não poderia ser diferente, a instituição do bem de família convencional não apenas pelo marido, mas sim pelo casal, como se extrai da simples leitura do seu art. 1.711. 
 
Elastecendo a legitimidade para instituição do bem de família convencional, veio a legislação a permitir que também o terceiro possa instituí-lo, como se nota dos arts. 1.711, Parágrafo Único, e 1.714 do Codex. A instituição pode se dar por ato inter vivos ou causa mortis, dependendo a eficácia do ato, neste caso, da aceitação expressa dos cônjuges beneficiados ou da entidade familiar beneficiada (os companheiros na união estável e o ascendente na família monoparental, exemplificativamente). 
 
Em qualquer caso, exige-se o registro do título no Cartório de Imóveis, a fim de que seja dada a necessária publicidade ao ato. 
 

1.3.5 Duração

Não há extinção do bem de família pela dissolução da entidade familiar (CC, art. 1.721). 
 
Nos precisos termos do art. 1.716 da Lei Civil .. a isenção das execuções por dívidas posteriores à instituição do bem de família ... durará enquanto tiver vida um dos cônjuges ou, na falta deles, até a maioridade civil da prole. 
 
O art 1.722 do Código de 2002 acrescenta que o bem de família extingue-se com a morte de ambos os cônjuges e a maioridade dos filhos, desde que não estejam sujeitos à curatela, apresentando hipótese de prorrogação da proteção patrimonial. 
 
Registre-se, de qualquer forma, que, se a dissolução da entidade familiar for em razão da morte de um dos componentes, o sobrevivente poderá pleitear a extinção do bem de família, caso seja o único bem do casal (CC, art. 1.721, parágrafo único). 
 

1.3.6 A questão da solvência do instituidor

Vale esclarecer, por oportuno, que a lei não exige do instituidor a comprovação do seu estado de solvência quando da constituição do seu bem de família convencional. A solvência do mesmo é presumida. 
 
(…) existindo dívidas anteriores à instituição, contra elas não poderá ser objetada a impenhorabilidade voluntariamente gravada, evitando, inclusive, eventual fraude. 
 

1.3.7 O Ministério Público e o bem de família

Com o advento do Código Civil de 2002, no entanto, o Parquet passou a ter atuação no bem de família convencional, consoante previsão expressa dos arts. 1.717 e 1.719. 
 
Quando os interessados pretenderem extinguir o bem de família instituído (prédio ou valores mobiliários), deverão levar o pleito ao juiz de família que, apreciando a justificação apresentada, poderá determinar a alienação do bem, após ouvir o Ministério Público. 
 
o sistema adotado indica a imperativa atuação do Promotor de Justiça em todo e qualquer processo que trate de bem de família, pois se intervirá quando se discuta o bem de família voluntário, com mais razão ainda deverá atuar nas causas que envolvam bem de família legal, já que ao Parquet incumbe, segundo o texto constitucional (art. 127), velar pela fiel efetivação da lei. 
 
Em qualquer hipótese, a falta de intimação do órgão do Ministério Público para que se manifeste (livremente) sobre o pedido relacionado ao bem de família conduz à fatal nulidade do processo, como reza o art. 246 do Código de Processo Civil. 
 

1.4 O bem de família legal

1.4.1 Noções conceituais e a proteção do bem de menor valor

A Lei no 8.009/90 (fruto da conversão da Medida Provisória no 143/ 90) criou, entre nós, uma nova forma de impenhorabilidade do bem de família (sem revogar o sistema do bem de família convencional). É o bem de família legal, cuja proteção é a impenhorabilidade, independentemente de ato de vontade do titular. 
 
O art. 1o da Lei no 8.009/90 indica que o imóvel residencial próprio do casal ou entidade familiar (união estável) é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais e filhos que sejam proprietários e nele residam, salvo previsão específica de lei. 
 
Na hipótese de o proprietário possuir mais de um imóvel, considerarse-á bem de família o de menor valor, nos termos da legislação aplicável, ainda que esteja residindo em outro, mais valioso. 
 
Todavia, não se olvide que uma interpretação construtiva do Decreto- lei no 3.200/41, especificamente de seu art. 19, resulta no reconhecimento da impenhorabilidade do imóvel mais valioso do devedor se nele já fixou sua residência há mais de dois anos. (...)

1.4.2 Alargamento do objeto

A impenhorabilidade legal do bem de família atinge não apenas o imóvel, mas também suas construções, plantações, benfeitorias de qualquer natureza e os equipamentos (inclusive profissionais), além de acobertar os móveis que guarnecem o lar, desde que quitados (art. 1o, Lei no 8.009/90). 
 
Apenas não estão alcançados pelo regime de impenhorabilidade legal, nos termos do art. 2o da Lei no 8.009/90, “os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos”, que poderão ser penhorados para o pagamento das dívidas do titular. 
 
É importante ressaltar que, tendo sido concebida a impenhorabilidade para conferir funcionalidade ao lar, se a residência é guarnecida com vários utilitários de mesma espécie, a impenhorabilidade somente incidirá sobre uma unidade de cada bem, sendo possível a penhora do que lhe exceder. 
 
Outrossim, é relevante assinalar que, após a vigência da Lei no 11.382/ 06 (que alterou a redação do art. 649 do Código de Processo Civil), é possível promover a penhora dos utensílios e bens que guarnecem o lar de elevado valor ou que ultrapassem o que é necessário para manter um padrão médio de vida. Parece-nos ser a concretização da teoria do patrimônio mínimo, consagrando que a efetiva proteção de lei deve se dirigir àquilo que é necessário para viver dignamente, não podendo, nessa medida, proteger bens supérfluos. 
 
Merecem referência, demais de tudo isso, algumas situações específicas, que também estão acobertadas pela impenhorabilidade legal: i) a posse de imóvel residencial, quando o possuidor demonstrar que o imóvel possuído é bem de família, também está encartada na proteção; ii) o imóvel em construção, por igual, é impenhorável, pois se considera antecipadamente bem de família, consoante interpretação finalística e valorativa dos Pretórios brasileiro; iii) a garagem, uma vez que integra – como qualquer outra parte – a unidade habitacional, salvo quando considerada autonomamente, admitida a sua penhora quando estiver individualizada como uma unidade autônoma, no Registro de Imóveis. Sobre o assunto, inclusive, foi editada a Súmula 449 do Superior Tribunal de Justiça, incorporando cabalmente esta compreensão: 
 
Súmula 449, STJ:
A vaga de garagem que possui matrícula própria no registro de imóveis não constitui bem de família para efeito de penhora.” 
 
Por derradeiro, convém lembrar que o art. 649 do Código de Processo Civil, com a redação emprestada pela Lei no 11.382/06, apresenta importante elenco de bens móveis que, igualmente, estão isentos de penhora por dívidas do titular (…)

Vale observar, em relação a estas hipóteses de impenhorabilidade, oriundas do Código de Processo Civil, que, identicamente, o juiz poderá conhecê-las de ofício por materializar o direito ao patrimônio mínimo da pessoa humana – que, sem dúvida, é matéria de ordem pública, devendo o magistrado garantir a dignidade do titular, cuja preservação é mandamento constitucional. 
 

1.4.3 Constitucionalidade do regime legal do bem de família

Malgrado a posição de alguns autores, contrária à adoção de um bem de família reconhecido por lei, independentemente de ato de instituição voluntária do próprio titular, não há qualquer inconstitucionalidade na Lei no 8.009/90 .

Assim sendo, ao contrário de violar o Texto Constitucional, a lei do bem de família a ele está adaptada, sintonizada com a interpretação teleológica para a aplicação concreta dos princípios da dignidade humana, da solidariedade social e da igualdade substancial, além da erradicação da pobreza (CF/88, arts. 1º, 3º e 5º). Especialmente depois do reconhecimento, no art. 6º da Carta Maior, do direito social à moradia, privilegiando as situações jurídicas fundamentais da pessoa humana. 
 

1.4.4 Característica do bem de família legal

Enquanto do bem de família voluntário decorrem inalienabilidade e impenhorabilidade, nos termos da Lei Civil, o bem de família legal, regulado pela Lei no 8.009/90, gera, apenas, a impenhorabilidade, não respondendo pelas dívidas civis, trabalhistas, comerciais, fiscais, previdenciárias e de qualquer outra natureza. 
 

1.4.5 A extensão da impenhorabilidade somente aos bens de valor médio necessários a uma vida digna. A (im)possibilidade de penhora do imóvel único de elevado valor

É certo e incontroverso que a regra geral de nosso sistema é a impenhorabilidade do imóvel que serve de lar para a pessoa humana, e a sua família e dos bens móveis que guarnecem este lar, como se depreende da simples – e ainda que perfunctória – leitura do parágrafo único do art. 1º da Lei no 8.009/90, a conhecida Lei do bem de família. 
 
Pois bem, com o advento da referida norma legal (CPC, art. 649), é inexorável a conclusão de que a impenhorabilidade do bem de família legal, no que tange aos bens móveis que guarnecem o lar (protegidos pela sistemática da Lei nº 8.009/90), somente alcança o que for necessário para manter um padrão médio de vida digna, consoante orientação do art. 649 do Código de Processo Civil. 
 
Trata-se, é certo, da concretização da teoria do patrimônio mínimo, consagrando que a efetiva proteção de lei deve se dirigir ao que é necessário para viver dignamente, não podendo, nessa medida, proteger bens supérfluos. 
 
Por evidente, somente em cada caso concreto será possível inferir qual é o padrão médio de cada pessoa, de modo a reconhecer se os seus bens são, ou não, de padrão médio. 
 
Entrementes, segundo disposição expressa do texto legal mencionado (CPC, art. 649), a possibilidade de penhora de bens de elevado valor se restringe aos móveis, não alcançando os imóveis, que restariam protegidos integralmente, mesmo que de elevado valor. 
 
Buscando, porém, uma interpretação principiológica, partindo da força normativa dos princípios (e, em especial, dos princípios constitucionais), é de se refletir quanto à garantia de acesso à ordem jurídica justa e efetiva, decorrente do art. 5o, XXXV, da Lex Mater, e, com isso, aventar a possibilidade de penhora de imóveis (ou mesmo salários) de elevado valor. 
 
É que, não havendo outros bens penhoráveis (móveis ou imóveis) pertencentes ao devedor, restará inviabilizada a tutela jurisdicional, caso não seja possível ao credor penhorar um imóvel de elevado valor do executado, o que, a toda evidência, excede o conceito de padrão médio de vida digna. 
 
Acrescente-se a isso que não haverá, na hipótese de penhora de imóvel de elevado valor, afronta à garantia de proteção de patrimônio mínimo (e, consequentemente, da dignidade da pessoa do devedor) por conta de seu valor elevado e, igualmente, porque será resguardado para o executado um mínimo necessário à manutenção de um padrão médio de vida, dedicando-se a ele uma parcela do valor apurado. 
 
Por outro turno, é fácil perceber que obstar a penhora de bens de alto valor viola, frontalmente, a efetividade da prestação jurisdicional, na medida em que se confere proteção insuficiente ao direito fundamental (e constitucionalmente assegurado – CF, art. 5o, XXXV) de ação, impedindo a sua efetividade.

(...) o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais já reconheceu a penhorabilidade de imóvel residencial de alto valor econômico: 
 
BEM DE FAMÍLIA - IMPENHORABILIDADE - LEI 8.009/90 - IMÓVEL EM BAIRRO NOBRE - INCIDÊNCIA DA CONSTRIÇÃO - RESGUARDAR AO DEVEDOR NA ARREMATAÇÃO O VALOR DE UM IMÓVEL MÉDIO - POSSIBILIDADE. A Lei 8.009/90 de cunho eminentemente social, tem por escopo resguardar a residência do devedor e de sua família, assegurando-lhes condições dignas de moradia; mas não pode o devedor servir-se do instituto do bem de família como meio para frustrar legítima pretensão de seus credores, subtraindo da execução imóvel de elevado valor, situado em bairro nobre, e como tal pode e deve ser ele objeto do arresto; devendo, no entanto, extrair, quando da venda ou arrematação, um valor que proporcione ao executado a aquisição de um imóvel de porte médio, no mesmo município de sua localização, capaz de assegurar ao devedor e à sua entidade familiar condições de sobrevivência digna, mas sem suntuosidade.” (TJ/MG, Ac. 11a Câm.Cív., AgInstr. 1.0024.06.986805-7/005(1) – comarca de Belo Horizonte, rel. Des. Duarte de Paula, j. 5.3.08, DJMG 19.3.08) 
 

1.4.6 Exceção à regra da impenhorabilidade do bem de família legal

É o art. 3º da multicitada lei protetiva estabelecendo que a impenhorabilidade não produzirá efeitos quando se tratar de uma cobrança de i) créditos de natureza trabalhista ou previdenciária de trabalhadores da própria residência; ii) créditos financeiros destinados à construção ou aquisição do próprio imóvel, mas não abrangidos os créditos destinados à reforma do imóvel; iii) pensão alimentícia; iv) impostos, taxas e contribuições devidas em função do imóvel; v) execução de hipoteca que recaia sobre o próprio bem, dado voluntariamente em garantia pelos titulares, em prol do núcleo familiar; vi) valores decorrentes da aquisição do imóvel com o produto de crime ou para execução de sentença criminal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens; vii) dívida de fiança concedida em contrato de locação. 
 
Como se pode notar, em linhas gerais, as excepcionais hipóteses autorizadoras da penhora do bem de família se justificam através da técnica de ponderação de interesses, uma vez que o pagamento das referidas dívidas se apresenta de grande valor, autorizando a penhora do bem. 
 
Outra questão de relevo concerne à penhorabilidade do bem de família para o pagamento de cotas condominiais. Depois de algumas controvérsias, restou pacificada a matéria, especialmente no Superior Tribunal de Justiça, no sentido de ser “passível de penhora o imóvel residencial da família, quando a execução se referir a contribuições condominiais sobre ele incidentes” (STJ, Ac. 3a T., REsp. 15.252-0/SP, rel. Min. Waldemar Zveiter, j. 23.2.99, DJU 19.4.99). A justificativa adotada pela Corte Superior para a penhora do bem de família para pagamento de despesas condominiais repousa no fato de que “o vocábulo contribuições a que alude o inciso IV, do art. 3º, da Lei no 8.009/90 não se reveste de qualquer conotação fiscal, mas representa, in casu, a cota-parte de cada condômino no rateio das despesas condominiais. 
 
De fato, parece ter havido um grave equívoco legislativo ao permitir que fosse penhorado o bem de família por conta da fiança prestada em contrato de locação de imóvel urbano. É que os bens – móveis ou imóveis, eventualmente existentes – do locatário (o devedor principal) não poderão ser penhorados, uma vez que incidirá sobre eles a impenhorabilidade legal, em conformidade com o art. 1o da lei protetiva. Ora, se a lei, que não permite a penhora do bem de família do devedor principal, vai permitir (inciso VII, art. 3o) a penhora do imóvel que serve de moradia para o fiador, viola flagrantemente a igualdade substancial constitucional, maculando na inteireza o inciso referido. 
 
De qualquer maneira, admitida a viabilidade do referido inciso VII, a sua aplicação somente poderá ocorrer no caso de fiança locatícia (afastadas as demais hipóteses de fiança), eis que o seu alcance dependerá, seguramente, de uma interpretação restritiva. 
 

1.4.7 Retroatividade

Prevaleceu o entendimento de que a impenhorabilidade decorrente do bem de família legal atingiu os processos em curso quando do advento da lei, não violando o direito adquirido do credor-exequente. Os argumentos vitoriosos foram: i) o caráter de norma de ordem pública; ii) a determinação expressa de imediata vigência, cancelando as execuções que lhe antecederam, afirmada pela Medida Provisória que antecedeu à referida lei; iii) a natureza processual da norma determina aplicação imediata. 
 
STJ, Súmula 205, vazada nos seguintes termos: “a Lei no 8.009/ 90 aplica-se à penhora realizada antes de sua vigência”. 
 

1.4.8 Ampla compreensão do núcleo familiar e necessidade de fixação de residência efetiva

Primus, impende lembrar que não só a família fundada no casamento, mas, por igual, qualquer espécie de modelo familiar contará com a proteção do bem de família, como, por exemplo, a união estável e a família monoparental (comunidade formada por um dos ascendentes e sua prole, nos termos do art. 226 da CF/88). Aliás, até mesmo as entidades familiares não contempladas expressamente na Lei Maior, chamadas comumente de entidades parafamiliares ou famílias sociológicas, estão inseridas na proteção legal, já que o rol do pré-falado art. 226 da Lex Legum não é taxativo, mas meramente exemplificativo. 
 
Secundus, há de se afirmar a desnecessidade de estar o titular (e seu grupo familiar) residindo efetivamente no próprio bem, interpretando construtivamente o art. 5º da Lei nº 8.009/90. 
 
Nesse sentido, já se fixou entendimento em nossas Casas Judiciais, como se pode depreender: “consoante anotado em precedentes da Turma, e em interpretação teleológica e valorativa, faz jus aos benefícios da Lei 8.009/90 o devedor que, mesmo não residindo no único imóvel que lhe pertence, utiliza o valor obtido com a locação desse bem como complemento da renda familiar, considerando que o objetivo da norma é o de garantir a morada familiar ou a subsistência da família” (STJ, Ac. 2a Secção, Resp. 31597-9/RJ, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJU 15.3.04, in Revista Jurídica 317:131).
 

1.4.9 Alegação no processo

É mister reconhecer, também, a possibilidade de a impenhorabilidade legal, decorrente da Lei nº 8.009/90, ser suscitada por qualquer interessado (a qualquer tempo ou grau de jurisdição) ou mesmo reconhecida de ofício pelo magistrado. 
 
De logo, veja-se que, apesar dos embargos do devedor serem o meio processualmente disponibilizado para a alegação da impenhorabilidade do bem de família, é possível reconhecê-la através de simples petição atravessada nos autos do processo de execução (a chamada exceção de preexecutividade ou objeção de preexecutividade), a qualquer tempo, até o exaurimento do processo executório. 
 
Dúvida, portanto, inexiste: a impenhorabilidade decorrente do bem de família involuntário é de ordem pública, podendo ser cogitada a qualquer tempo ou grau de jurisdição, inclusive nas instâncias extraordinárias, bem como conhecida ex officio pelo juiz .

Não é despiciendo destacar, ainda, que o Superior Tribunal de Justiça vem reconhecendo que a proteção decorrente da impenhorabilidade do bem de família é irrenunciável. 
 

1.5 Redefinindo o bem de família legal: o bem da pessoa humana como expressão de seu patrimônio mínimo (o bem de família da pessoa sozinha)

Na esteira desse raciocínio, de sólida base constitucional, foi proclamada a ideia da proteção ao bem da pessoa humana solteira pela jurisprudência harmoniosa do Superior Tribunal de Justiça. A tese aqui esposada ganhou eco em nossos Pretórios, acolhida especialmente pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em diversas passagens (...)

A posição da jurisprudência restou de tal modo sedimentada que se assentou a ideia de que “o conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas”, conforme reconheceu a Súmula 364 do Superior Tribunal de Justiça. 
 
Em sendo assim, o bem pertencente à pessoa solitária está protegido: i) seja pela técnica de expansão das garantias decorrentes de incidência de preceito constitucional, permitindo que se interprete ampliativamente as normas protetivas do bem de família; ii) por conta do direito á moradia, reconhecido na Emenda Constitucional no 26/00; iii) pela incidência da teoria do patrimônio mínimo da pessoa humana, tutelando o substrato patrimonial que se precisa para viver dignamente (o chamado mínimo existencial). 
 
E, dessa maneira, talvez já se possa arriscar a afirmação de que a proteção do bem de família legal alcança, por igual, a pessoa humana sozinha, independentemente de ter constituído uma entidade familiar. Por isso, já se poderia falar em bem da pessoa humana, e não apenas bem de família
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  • Referência
- FARIAS, Cristiano Chaves. ROSENVALD, Marcelo. Direito Civil Teoria Geral. Capítulo VI - Os bens jurídicos, págs. 571-611. 9ªed. Editora Lumen Jures, Rio de Janeiro: 2011.(Fichamento)
 
 Bons estudos!
 

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