(Fichamento Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, 2011)
1.1 O bem de família consubstanciando a teoria do patrimônio mínimo da pessoa humana (direito a mínimo existencial)
Historicamente,
o Direito Civil foi enxergado com a ótica da orientação liberal
predominante na Revolução Francesa, fulcrando sua base sólida na
proteção patrimonial. Exemplo nítido é a proteção à
propriedade privada e à obrigatoriedade do cumprimento dos
contratos, sedimentada no velho pacta sunt servanda.
Em
outras palavras, a partir dos novos valores que permeiam a ordem
jurídica brasileira, a partir da legalidade constitucional, é
imperioso despatrimonializar as relações jurídicas, sendo mister
afirmar o ser sobrepujando o ter.
Enfim,
relacionando a garantia de um mínimo patrimonial à dignidade da
pessoa humana, percebe-se o objetivo almejado pela Constituição da
República no sentido de garantir a erradicação da pobreza e a
redução das desigualdades sociais, funcionalizando o patrimônio
como um verdadeiro instrumento de cidadania e justificando a
separação de uma parcela essencial, básica, do patrimônio para
atender às necessidades elementares da pessoa humana.
E
o exemplo mais contundente da proteção ao patrimônio mínimo da
pessoa humana é, sem dúvida, a proteção ao bem de família (Lei
no 8.009/ 90 e CC, arts. 1.711 a 1.722).
1.2 O bem de família no direito brasileiro
1.2.1 A dualidade de regimes
O
nosso ordenamento jurídico, seguindo tendência universal, não
admite a responsabilização pessoal do devedor por suas dívidas,
apenas vinculando o seu patrimônio – princípio da
responsabilidade patrimonial, consagrado no art. 591 do Código de
Processo Civil e no art. 391 do Código Civil. Assim, embora o
devedor assuma suas obrigações pessoalmente, responde por elas,
apenas, com o seu patrimônio, presente e futuro.
Tal
regra, no entanto, comporta exceções, havendo bens que são
excluídos do cumprimento das obrigações. Assim, além de alguns
bens excepcionados pela legislação processual (vide, a respeito, o
art. 649 do Código Instrumental), também está livre de penhora o
bem de família, disciplinado nos arts. 1.711 a 1.722 da Lei Civil,
bem como na Lei no 8.009/90.
A
importância da proteção do bem que serve de abrigo, de lar, à
pessoa humana é incontroversa. Sob o prisma psicológico e cultural,
é legítimo e natural o anseio da generalidade das pessoas em obter
a casa própria, por “despertar a segurança psicológica da
certeza do abrigo”, além de refletir maior proteção patrimonial,
(...).
O
ordenamento jurídico brasileiro admite duas modalidades de bem de
família: i) o bem de família convencional, disciplinado pelo Código
Civil nos arts. 1.711 a 1.722; ii) o bem de família legal ou
obrigatório, tratado na Lei nº 8.009/90.
1.2.2 O valor família
Os
novos valores que inspiram a sociedade contemporânea sobrepujam e
rompem, definitivamente, com a concepção tradicional de família. A
arquitetura da sociedade moderna impõe um modelo familiar
descentralizado, democrático, igualitário e desmatrimonializado. O
escopo precípuo da família passa a ser a solidariedade social e
demais condições necessárias ao aperfeiçoamento e progresso
humano, regido o núcleo familiar pelo afeto, como mola propulsora.
A
proteção ao núcleo familiar deverá estar atrelada,
necessariamente, à tutela da pessoa humana, através dos
(democráticos) princípios gerais da Carta Maior.
Desnivelar
a proteção da pessoa humana, sob o argumento de proteger a
instituição familiar é cometer gravíssima subversão
hermenêutica, violando frontalmente o comando constitucional!
Nesse
diapasão, vale invocar o brilhante voto (embora vencido naquela
oportunidade) do Ministro Fontes de Alencar, em julgamento no
Superior Tribunal de Justiça, acolhendo tais argumentos: “Quanto
ao funda-mento do acórdão de que ela é solteira e, em
consequência, não atingida pela benesse da Lei 8.009/90, data
venia, afasto-o, porque senão chegaríamos à suprema injustiça. Se
o cidadão fosse casado, ainda que mal casado, faria jus ao
benefício; se fosse viúvo, sofrendo a dor da viuvez, não teria
direito ao benefício. Rogo vênia a V. Exa. para não restringir
esse conceito de família a tão pouco” .
1.2.3 Natureza jurídica do bem de família
Apesar
de intensas discussões acerca da matéria, tem-se, hodiernamente,
que a natureza jurídica do bem de família é de forma de afetação
de bens a um destino especial, qual seja, assegurar a dignidade
humana dos componentes do núcleo familiar.
Isto
é, protege-se o bem que abriga a família com o escopo de garantir a
sua sobrevivência digna, reconhecida a necessidade de um mínimo
existencial de patrimônio, para a realização da justiça social.
1.3 O bem de família convencional
1.3.1 Noções conceituais
Inserido
topologicamente no Livro da Parte Geral, a partir do art. 70 do
Código Civil de 1916, o bem de família era compreendido como “o
prédio destinado pelos chefes de família ao exclusivo domicílio
desta, mediante especialização no Registro Imobiliário,
consagrando-lhe uma impenhorabilidade limitada e inalienabilidade
relativa”.
O
Código Civil, atualizando conceitualmente o bem de família aos
avanços determinados pela Constituição Federal de 1988, permitiu a
sua instituição não apenas pelo marido, embora tenha mantido a
voluntariedade na sua constituição. Outrossim, deslocou a
disciplina do instituto para o Livro do Direito de Família. Assim, o
conceito de família para os fins de constituição do bem de família
abrange, também, a união estável, a família monoparental e outras
formas de constituição de núcleos básicos, em razão do novo
espectro e alcance do conceito de entidade familiar, apresentado pela
Constituição da República, em seu art. 226.
(…)
Aqui, somente é possível a penhora do bem de família,
exclusivamente, em casos de tributo devido em razão do próprio bem
(IPTU, por exemplo) ou dívidas de condomínio. No bem de família
legal as hipóteses são mais amplas, em número de sete (inclusive
as duas antes referidas), mencionadas no art. 3o da Lei no 8.009/90.
Ainda
em relação ao Codex, a partir do art. 1.711, é possível extrair o
seguinte regramento para o bem de família convencional:
i)
impossibilidade de ter o prédio destino diferente, nem mesmo podendo
ser alienado sem consentimento de todos os interessados (inclusive
filhos);
ii)
instituição mediante testamento ou escritura pública,
constituindo- se pelo registro de seu título no Cartório de
Imóveis;
iii)
a fração do patrimônio destinado à instituição do bem de
família não pode ultrapassar o montante de um terço do patrimônio
líquido do instituidor, existente ao tempo da instituição.
1.3.2 Extensão da proteção
É
lícito afirmar, a partir da intelecção do bem de família
voluntário, instituído por meio de registro no Cartório de Imóveis
(CC, art. 1.714), que os seus efeitos são a impenhorabilidade e a
inalienabilidade. (...) e atingem não apenas o imóvel, rural ou
urbano, que serve de residência, mas, por igual, suas pertenças e
acessórios (CC, art. 1.712).
A
novidade fica por conta da possibilidade de inserir, na constituição
do bem de família, cláusula pela qual a proteção venha a
abranger, também, valores mobiliários cuja renda venha a ser
aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família, desde
que não excedentes ao valor do próprio prédio instituído, à
época de sua instituição (CC, arts. 1.712 e 1.713).
(…)
Em outras palavras, o bem de família instituído voluntariamente não
pode ter valor superior a um terço do patrimônio líquido do
instituidor, no momento da sua estipulação. Excedida tal limitação,
não produzirá efeitos a instituição, podendo o bem ficar
submetido à proteção da Lei do bem de família involuntário, se
servir como residência do núcleo familiar.
1.3.3 Exceções à regra da impenhorabilidade do bem de família voluntário
Existem
algumas exceções à regra de que o bem de família voluntário é
impenhorável, estando elencadas no art. 1.715 da Codificação
Reale.
Deste
modo, é possível penhorar o bem de família instituído pelos
titulares para o pagamento de dívidas oriundas de tributos relativos
ao próprio prédio (como o IPTU ou o ITR) ou ainda de despesas
condominiais. (…)
Vale
o registro de que outras exceções, previstas no art. 3o da Lei noº
8.009/90 são exclusivamente incidentes no regime do bem de família
legal, não se aplicando à sistemática do bem de família
convencional, que, por sua vez, somente admite temperamentos nos dois
únicos casos aqui registrados, decorrentes do art. 1.715 da Lei
Civil.
1.3.4 Legitimação para a instituição do bem de família convencional
Coadunando-se
com a Magna Carta, o Código Civil permite, e não poderia ser
diferente, a instituição do bem de família convencional não
apenas pelo marido, mas sim pelo casal, como se extrai da simples
leitura do seu art. 1.711.
Elastecendo
a legitimidade para instituição do bem de família convencional,
veio a legislação a permitir que também o terceiro possa
instituí-lo, como se nota dos arts. 1.711, Parágrafo Único, e
1.714 do Codex. A instituição pode se dar por ato inter vivos ou
causa mortis, dependendo a eficácia do ato, neste caso, da aceitação
expressa dos cônjuges beneficiados ou da entidade familiar
beneficiada (os companheiros na união estável e o ascendente na
família monoparental, exemplificativamente).
Em
qualquer caso, exige-se o registro do título no Cartório de
Imóveis, a fim de que seja dada a necessária publicidade ao ato.
1.3.5 Duração
Não
há extinção do bem de família pela dissolução da entidade
familiar (CC, art. 1.721).
Nos
precisos termos do art. 1.716 da Lei Civil .. a isenção das
execuções por dívidas posteriores à instituição do bem de
família ... durará enquanto tiver vida um dos cônjuges ou, na
falta deles, até a maioridade civil da prole.
O
art 1.722 do Código de 2002 acrescenta que o bem de família
extingue-se com a morte de ambos os cônjuges e a maioridade dos
filhos, desde que não estejam sujeitos à curatela, apresentando
hipótese de prorrogação da proteção patrimonial.
Registre-se,
de qualquer forma, que, se a dissolução da entidade familiar for em
razão da morte de um dos componentes, o sobrevivente poderá
pleitear a extinção do bem de família, caso seja o único bem do
casal (CC, art. 1.721, parágrafo único).
1.3.6 A questão da solvência do instituidor
Vale
esclarecer, por oportuno, que a lei não exige do instituidor a
comprovação do seu estado de solvência quando da constituição do
seu bem de família convencional. A solvência do mesmo é presumida.
(…)
existindo dívidas anteriores à instituição, contra elas não
poderá ser objetada a impenhorabilidade voluntariamente gravada,
evitando, inclusive, eventual fraude.
1.3.7 O Ministério Público e o bem de família
Com
o advento do Código Civil de 2002, no entanto, o Parquet passou a
ter atuação no bem de família convencional, consoante previsão
expressa dos arts. 1.717 e 1.719.
Quando
os interessados pretenderem extinguir o bem de família instituído
(prédio ou valores mobiliários), deverão levar o pleito ao juiz de
família que, apreciando a justificação apresentada, poderá
determinar a alienação do bem, após ouvir o Ministério Público.
o
sistema adotado indica a imperativa atuação do Promotor de Justiça
em todo e qualquer processo que trate de bem de família, pois se
intervirá quando se discuta o bem de família voluntário, com mais
razão ainda deverá atuar nas causas que envolvam bem de família
legal, já que ao Parquet incumbe, segundo o texto constitucional
(art. 127), velar pela fiel efetivação da lei.
Em
qualquer hipótese, a falta de intimação do órgão do Ministério
Público para que se manifeste (livremente) sobre o pedido
relacionado ao bem de família conduz à fatal nulidade do processo,
como reza o art. 246 do Código de Processo Civil.
1.4 O bem de família legal
1.4.1 Noções conceituais e a proteção do bem de menor valor
A
Lei no 8.009/90 (fruto da conversão da Medida Provisória no 143/
90) criou, entre nós, uma nova forma de impenhorabilidade do bem de
família (sem revogar o sistema do bem de família convencional). É
o bem de família legal, cuja proteção é a impenhorabilidade,
independentemente de ato de vontade do titular.
O
art. 1o da Lei no 8.009/90 indica que o imóvel residencial próprio
do casal ou entidade familiar (união estável) é impenhorável e
não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial,
fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos
cônjuges ou pelos pais e filhos que sejam proprietários e nele
residam, salvo previsão específica de lei.
Na
hipótese de o proprietário possuir mais de um imóvel,
considerarse-á bem de família o de menor valor, nos termos da
legislação aplicável, ainda que esteja residindo em outro, mais
valioso.
Todavia,
não se olvide que uma interpretação construtiva do Decreto- lei no
3.200/41, especificamente de seu art. 19, resulta no reconhecimento
da impenhorabilidade do imóvel mais valioso do devedor se nele já
fixou sua residência há mais de dois anos. (...)
1.4.2 Alargamento do objeto
A
impenhorabilidade legal do bem de família atinge não apenas o
imóvel, mas também suas construções, plantações, benfeitorias
de qualquer natureza e os equipamentos (inclusive profissionais),
além de acobertar os móveis que guarnecem o lar, desde que quitados
(art. 1o, Lei no 8.009/90).
Apenas
não estão alcançados pelo regime de impenhorabilidade legal, nos
termos do art. 2o da Lei no 8.009/90, “os veículos de transporte,
obras de arte e adornos suntuosos”, que poderão ser penhorados
para o pagamento das dívidas do titular.
É
importante ressaltar que, tendo sido concebida a impenhorabilidade
para conferir funcionalidade ao lar, se a residência é guarnecida
com vários utilitários de mesma espécie, a impenhorabilidade
somente incidirá sobre uma unidade de cada bem, sendo possível a
penhora do que lhe exceder.
Outrossim,
é relevante assinalar que, após a vigência da Lei no 11.382/ 06
(que alterou a redação do art. 649 do Código de Processo Civil), é
possível promover a penhora dos utensílios e bens que guarnecem o
lar de elevado valor ou que ultrapassem o que é necessário para
manter um padrão médio de vida. Parece-nos ser a concretização da
teoria do patrimônio mínimo, consagrando que a efetiva proteção
de lei deve se dirigir àquilo que é necessário para viver
dignamente, não podendo, nessa medida, proteger bens supérfluos.
Merecem
referência, demais de tudo isso, algumas situações específicas,
que também estão acobertadas pela impenhorabilidade legal: i) a
posse de imóvel residencial, quando o possuidor demonstrar que o
imóvel possuído é bem de família, também está encartada na
proteção; ii) o imóvel em construção, por igual, é
impenhorável, pois se considera antecipadamente bem de família,
consoante interpretação finalística e valorativa dos Pretórios
brasileiro; iii) a garagem, uma vez que integra – como
qualquer outra parte – a unidade habitacional, salvo quando
considerada autonomamente, admitida a sua penhora quando estiver
individualizada como uma unidade autônoma, no Registro de
Imóveis. Sobre o assunto, inclusive, foi editada a Súmula 449
do Superior Tribunal de Justiça, incorporando cabalmente esta
compreensão:
Súmula
449, STJ:
“A
vaga de garagem que possui matrícula própria no registro de imóveis
não constitui bem de família para efeito de penhora.”
Por
derradeiro, convém lembrar que o art. 649 do Código de Processo
Civil, com a redação emprestada pela Lei no 11.382/06, apresenta
importante elenco de bens móveis que, igualmente, estão isentos de
penhora por dívidas do titular (…)
Vale
observar, em relação a estas hipóteses de impenhorabilidade,
oriundas do Código de Processo Civil, que, identicamente, o juiz
poderá conhecê-las de ofício por materializar o direito ao
patrimônio mínimo da pessoa humana – que, sem dúvida, é matéria
de ordem pública, devendo o magistrado garantir a dignidade do
titular, cuja preservação é mandamento constitucional.
1.4.3 Constitucionalidade do regime legal do bem de família
Malgrado
a posição de alguns autores, contrária à adoção de um bem de
família reconhecido por lei, independentemente de ato de instituição
voluntária do próprio titular, não há qualquer
inconstitucionalidade na Lei no 8.009/90 .
Assim
sendo, ao contrário de violar o Texto Constitucional, a lei do bem
de família a ele está adaptada, sintonizada com a interpretação
teleológica para a aplicação concreta dos princípios da dignidade
humana, da solidariedade social e da igualdade substancial, além da
erradicação da pobreza (CF/88, arts. 1º, 3º e 5º). Especialmente
depois do reconhecimento, no art. 6º da Carta Maior, do direito
social à moradia, privilegiando as situações jurídicas
fundamentais da pessoa humana.
1.4.4 Característica do bem de família legal
Enquanto
do bem de família voluntário decorrem inalienabilidade e
impenhorabilidade, nos termos da Lei Civil, o bem de família legal,
regulado pela Lei no 8.009/90, gera, apenas, a impenhorabilidade, não
respondendo pelas dívidas civis, trabalhistas, comerciais, fiscais,
previdenciárias e de qualquer outra natureza.
1.4.5 A extensão da impenhorabilidade somente aos bens de valor médio necessários a uma vida digna. A (im)possibilidade de penhora do imóvel único de elevado valor
É
certo e incontroverso que a regra geral de nosso sistema é a
impenhorabilidade do imóvel que serve de lar para a pessoa humana, e
a sua família e dos bens móveis que guarnecem este lar, como se
depreende da simples – e ainda que perfunctória – leitura do
parágrafo único do art. 1º da Lei no 8.009/90, a conhecida Lei do
bem de família.
Pois
bem, com o advento da referida norma legal (CPC, art. 649), é
inexorável a conclusão de que a impenhorabilidade do bem de família
legal, no que tange aos bens móveis que guarnecem o lar (protegidos
pela sistemática da Lei nº 8.009/90), somente alcança o que for
necessário para manter um padrão médio de vida digna, consoante
orientação do art. 649 do Código de Processo Civil.
Trata-se,
é certo, da concretização da teoria do patrimônio mínimo,
consagrando que a efetiva proteção de lei deve se dirigir ao que é
necessário para viver dignamente, não podendo, nessa medida,
proteger bens supérfluos.
Por
evidente, somente em cada caso concreto será possível inferir qual
é o padrão médio de cada pessoa, de modo a reconhecer se os seus
bens são, ou não, de padrão médio.
Entrementes,
segundo disposição expressa do texto legal mencionado (CPC, art.
649), a possibilidade de penhora de bens de elevado valor se
restringe aos móveis, não alcançando os imóveis, que restariam
protegidos integralmente, mesmo que de elevado valor.
Buscando,
porém, uma interpretação principiológica, partindo da força
normativa dos princípios (e, em especial, dos princípios
constitucionais), é de se refletir quanto à garantia de acesso à
ordem jurídica justa e efetiva, decorrente do art. 5o, XXXV, da Lex
Mater, e, com isso, aventar a possibilidade de penhora de imóveis
(ou mesmo salários) de elevado valor.
É
que, não havendo outros bens penhoráveis (móveis ou imóveis)
pertencentes ao devedor, restará inviabilizada a tutela
jurisdicional, caso não seja possível ao credor penhorar um imóvel
de elevado valor do executado, o que, a toda evidência, excede o
conceito de padrão médio de vida digna.
Acrescente-se
a isso que não haverá, na hipótese de penhora de imóvel de
elevado valor, afronta à garantia de proteção de patrimônio
mínimo (e, consequentemente, da dignidade da pessoa do devedor) por
conta de seu valor elevado e, igualmente, porque será resguardado
para o executado um mínimo necessário à manutenção de um padrão
médio de vida, dedicando-se a ele uma parcela do valor apurado.
Por
outro turno, é fácil perceber que obstar a penhora de bens de alto
valor viola, frontalmente, a efetividade da prestação
jurisdicional, na medida em que se confere proteção insuficiente ao
direito fundamental (e constitucionalmente assegurado – CF, art.
5o, XXXV) de ação, impedindo a sua efetividade.
(...) o
Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais já reconheceu a
penhorabilidade de imóvel residencial de alto valor econômico:
“BEM
DE FAMÍLIA - IMPENHORABILIDADE - LEI 8.009/90 - IMÓVEL EM BAIRRO
NOBRE - INCIDÊNCIA DA CONSTRIÇÃO - RESGUARDAR AO DEVEDOR NA
ARREMATAÇÃO O VALOR DE UM IMÓVEL MÉDIO - POSSIBILIDADE. A Lei
8.009/90 de cunho eminentemente social, tem por escopo resguardar a
residência do devedor e de sua família, assegurando-lhes condições
dignas de moradia; mas não pode o devedor servir-se do instituto do
bem de família como meio para frustrar legítima pretensão de seus
credores, subtraindo da execução imóvel de elevado valor, situado
em bairro nobre, e como tal pode e deve ser ele objeto do arresto;
devendo, no entanto, extrair, quando da venda ou arrematação, um
valor que proporcione ao executado a aquisição de um imóvel de
porte médio, no mesmo município de sua localização, capaz de
assegurar ao devedor e à sua entidade familiar condições de
sobrevivência digna, mas sem suntuosidade.” (TJ/MG, Ac. 11a
Câm.Cív., AgInstr. 1.0024.06.986805-7/005(1) – comarca de Belo
Horizonte, rel. Des. Duarte de Paula, j. 5.3.08, DJMG 19.3.08)
1.4.6 Exceção à regra da impenhorabilidade do bem de família legal
É
o art. 3º da multicitada lei protetiva estabelecendo que a
impenhorabilidade não produzirá efeitos quando se tratar de uma
cobrança de i) créditos de natureza trabalhista ou previdenciária
de trabalhadores da própria residência; ii) créditos financeiros
destinados à construção ou aquisição do próprio imóvel, mas
não abrangidos os créditos destinados à reforma do imóvel; iii)
pensão alimentícia; iv) impostos, taxas e contribuições devidas
em função do imóvel; v) execução de hipoteca que recaia sobre o
próprio bem, dado voluntariamente em garantia pelos titulares, em
prol do núcleo familiar; vi) valores decorrentes da aquisição do
imóvel com o produto de crime ou para execução de sentença
criminal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento
de bens; vii) dívida de fiança concedida em contrato de locação.
Como
se pode notar, em linhas gerais, as excepcionais hipóteses
autorizadoras da penhora do bem de família se justificam através da
técnica de ponderação de interesses, uma vez que o pagamento das
referidas dívidas se apresenta de grande valor, autorizando a
penhora do bem.
Outra
questão de relevo concerne à penhorabilidade do bem de família
para o pagamento de cotas condominiais. Depois de algumas
controvérsias, restou pacificada a matéria, especialmente no
Superior Tribunal de Justiça, no sentido de ser “passível de
penhora o imóvel residencial da família, quando a execução se
referir a contribuições condominiais sobre ele incidentes” (STJ,
Ac. 3a T., REsp. 15.252-0/SP, rel. Min. Waldemar Zveiter, j. 23.2.99,
DJU 19.4.99). A justificativa adotada pela Corte Superior para
a penhora do bem de família para pagamento de despesas condominiais
repousa no fato de que “o vocábulo contribuições a que alude o
inciso IV, do art. 3º, da Lei no 8.009/90 não se reveste de
qualquer conotação fiscal, mas representa, in casu, a cota-parte de
cada condômino no rateio das despesas condominiais.
De
fato, parece ter havido um grave equívoco legislativo ao permitir
que fosse penhorado o bem de família por conta da fiança prestada
em contrato de locação de imóvel urbano. É que os bens – móveis
ou imóveis, eventualmente existentes – do locatário (o devedor
principal) não poderão ser penhorados, uma vez que incidirá sobre
eles a impenhorabilidade legal, em conformidade com o art. 1o da lei
protetiva. Ora, se a lei, que não permite a penhora do bem de
família do devedor principal, vai permitir (inciso VII, art. 3o) a
penhora do imóvel que serve de moradia para o fiador, viola
flagrantemente a igualdade substancial constitucional, maculando na
inteireza o inciso referido.
De
qualquer maneira, admitida a viabilidade do referido inciso VII, a
sua aplicação somente poderá ocorrer no caso de fiança locatícia
(afastadas as demais hipóteses de fiança), eis que o seu alcance
dependerá, seguramente, de uma interpretação restritiva.
1.4.7 Retroatividade
Prevaleceu
o entendimento de que a impenhorabilidade decorrente do bem de
família legal atingiu os processos em curso quando do advento da
lei, não violando o direito adquirido do credor-exequente. Os
argumentos vitoriosos foram: i) o caráter de norma de ordem pública;
ii) a determinação expressa de imediata vigência, cancelando as
execuções que lhe antecederam, afirmada pela Medida Provisória que
antecedeu à referida lei; iii) a natureza processual da norma
determina aplicação imediata.
STJ,
Súmula 205, vazada nos seguintes termos: “a Lei no 8.009/ 90
aplica-se à penhora realizada antes de sua vigência”.
1.4.8 Ampla compreensão do núcleo familiar e necessidade de fixação de residência efetiva
Primus,
impende lembrar que não só a família fundada no casamento, mas,
por igual, qualquer espécie de modelo familiar contará com a
proteção do bem de família, como, por exemplo, a união estável e
a família monoparental (comunidade formada por um dos ascendentes e
sua prole, nos termos do art. 226 da CF/88). Aliás, até mesmo as
entidades familiares não contempladas expressamente na Lei Maior,
chamadas comumente de entidades parafamiliares ou famílias
sociológicas, estão inseridas na proteção legal, já que o rol do
pré-falado art. 226 da Lex Legum não é taxativo, mas meramente
exemplificativo.
Secundus,
há de se afirmar a desnecessidade de estar o titular (e seu grupo
familiar) residindo efetivamente no próprio bem, interpretando
construtivamente o art. 5º da Lei nº 8.009/90.
Nesse
sentido, já se fixou entendimento em nossas Casas Judiciais, como se
pode depreender: “consoante anotado em precedentes da Turma, e em
interpretação teleológica e valorativa, faz jus aos benefícios da
Lei 8.009/90 o devedor que, mesmo não residindo no único imóvel
que lhe pertence, utiliza o valor obtido com a locação desse bem
como complemento da renda familiar, considerando que o objetivo da
norma é o de garantir a morada familiar ou a subsistência da
família” (STJ, Ac. 2a Secção, Resp. 31597-9/RJ, rel. Min. Sálvio
de Figueiredo Teixeira, DJU 15.3.04, in Revista Jurídica 317:131).
1.4.9 Alegação no processo
É
mister reconhecer, também, a possibilidade de a impenhorabilidade
legal, decorrente da Lei nº 8.009/90, ser suscitada por qualquer
interessado (a qualquer tempo ou grau de jurisdição) ou mesmo
reconhecida de ofício pelo magistrado.
De
logo, veja-se que, apesar dos embargos do devedor serem o meio
processualmente disponibilizado para a alegação da
impenhorabilidade do bem de família, é possível reconhecê-la
através de simples petição atravessada nos autos do processo de
execução (a chamada exceção de preexecutividade ou objeção de
preexecutividade), a qualquer tempo, até o exaurimento do processo
executório.
Dúvida,
portanto, inexiste: a impenhorabilidade decorrente do bem de família
involuntário é de ordem pública, podendo ser cogitada a qualquer
tempo ou grau de jurisdição, inclusive nas instâncias
extraordinárias, bem como conhecida ex officio pelo juiz .
Não
é despiciendo destacar, ainda, que o Superior Tribunal de Justiça
vem reconhecendo que a proteção decorrente da impenhorabilidade do
bem de família é irrenunciável.
1.5 Redefinindo o bem de família legal: o bem da pessoa humana como expressão de seu patrimônio mínimo (o bem de família da pessoa sozinha)
Na
esteira desse raciocínio, de sólida base constitucional, foi
proclamada a ideia da proteção ao bem da pessoa humana solteira
pela jurisprudência harmoniosa do Superior Tribunal de Justiça. A
tese aqui esposada ganhou eco em nossos Pretórios, acolhida
especialmente pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça,
em diversas passagens (...)
A
posição da jurisprudência restou de tal modo sedimentada que se
assentou a ideia de que “o conceito de impenhorabilidade de bem de
família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras,
separadas e viúvas”, conforme reconheceu a Súmula 364 do Superior
Tribunal de Justiça.
Em
sendo assim, o bem pertencente à pessoa solitária está protegido:
i) seja pela técnica de expansão das garantias decorrentes de
incidência de preceito constitucional, permitindo que se interprete
ampliativamente as normas protetivas do bem de família; ii) por
conta do direito á moradia, reconhecido na Emenda Constitucional no
26/00; iii) pela incidência da teoria do patrimônio mínimo da
pessoa humana, tutelando o substrato patrimonial que se precisa para
viver dignamente (o chamado mínimo existencial).
E,
dessa maneira, talvez já se possa arriscar a afirmação de que a
proteção do bem de família legal alcança, por igual, a pessoa
humana sozinha, independentemente de ter constituído uma entidade
familiar. Por isso, já se poderia falar em bem da pessoa humana,
e não apenas bem de família.
_____________________________________________________ - Referência
-
FARIAS, Cristiano Chaves. ROSENVALD, Marcelo. Direito Civil Teoria
Geral. Capítulo VI - Os bens jurídicos, págs. 571-611. 9ªed. Editora
Lumen Jures, Rio de Janeiro: 2011.(Fichamento)
Bons estudos!
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