10
Desconsideração da Personalidade Jurídica (Disregrad Doctrine)
10.1
Noções e conceitos fundamentais
O
ordenamento jurídico confere personalidade jurídica às empresas,
permitindo que formem uma esfera jurídica e patrimonial autônoma e
independente, apartada do patrimônio individual de cada um de seus
sócios. É estabelecida, assim, uma espécie de blindagem
patrimonial, através da qual a pessoa jurídica responde pelas suas
dívidas e obrigações com o seu próprio patrimônio.
Todavia,
com os crescentes abusos praticados por sócios sem escrúpulos, que
utilizavam a estrutura autônoma e independente da pessoa jurídica
para a prática de negócios fraudulentos e desvinculados da
finalidade desta, afastando-se da responsabilidade, a jurisprudência
e a doutrina começaram a perceber a necessidade de buscar mecanismos
ágeis de atingir o patrimônio do sócio, em favor dos prejudicados
de boa-fé, inibindo a utilização da pessoa jurídica como escudo
para a prática de atos ilícitos ou abusos.
Ora,
a partir do momento em que resta evidenciado o abuso do direito
associativo, a fraude imposta a terceiros através do uso do véu
protetivo da pessoa jurídica, o desvio da finalidade almejada pela
empresa ou mesmo a (tão comum) promiscuidade entre as esferas
patrimoniais do sócio e da empresa, configura-se o uso indevido
(irregular) do direito de se associar, autorizando-se a
desconsideração do princípio da separação, permitindo que o
credor busque diretamente no patrimônio dos sócios a satisfação
da obrigação que não pode ser atendida pelo patrimônio da
empresa.
“Para
que o patrimônio do sócio responda pelas dívidas da sociedade,
mediante a aplicação da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica, é fundamental que o credor demonstre de
forma inequívoca que aquele agiu com excesso de poderes, infração
da lei ou do contrato social, caracterizando atos de malícia e
prejuízos à empresa, eis que a ‘disregard doctrine’ é exceção
e não a regra geral, devendo sempre prevalecer a idéia de pessoa
jurídica quando forem obedecidos os limites no ordenamento para a
sua utilização” (1o TACív.SP, Ac. 8a Câm., AgInst. 1.058.965-4,
rel. Juiz Carlos Alberto Lopes, j. 5.12.01, in RT 799:274).
10.2
Breve referência histórica
Originada
no direito anglo-saxão, a desconsideração da personalidade
jurídica foi bastante desenvolvida a partir da colaboração dos
tribunais ingleses e norte-americanos, com o escopo de obstar os
abusos praticados sob o véu da autonomia da pessoa jurídica,
mascarando interesses particulares dos sócios.
As
origens remotas do instituto, assim, vêm sendo fincadas em
precedentes jurisprudenciais colhidos no sistema do common law. Vem
se creditando as primeiras referências a alguns célebres
precedentes históricos. Um deles é o caso Salomon v. Salomon &
Co. Ltd., julgado em 1897 pela House of Lords, última instância
inglesa, com relatoria do Lord Macnaughten, porém com voto vencedor
do Lord Halisbury. Outro precedente é o caso Bank of United States
v. Deveaux, relatado pelo conhecido Juiz Marshall, da Corte Suprema
norte-americana, em 1809. Outrossim, o episódio United States vs
Lehigh Valley RailRoad, de 1910, também serve como registro
histórico da disregard doctrine.
10.3
Noções conceituais
A
desconsideração da personalidade jurídica significa,
essencialmente, o desprezo episódico (eventual), pelo Poder
Judiciário, da personalidade autônoma de uma pessoa jurídica, com
o propósito de permitir que os seus sócios respondam com o seu
patrimônio pessoal pelos atos abusivos ou fraudulentos praticados
sob o véu societário.
Destrinchando
tais ideias, com apoio nas palavras de João Baptista de Mello e
Souza Neto, quando as empresas são utilizadas “para o fim de
fraudar interesses de terceiros, poderão ter sua personalidade
jurídica tornada sem efeito perante os prejudicados que, então,
poderão investir contra o patrimônio particular dos sócios ou
associados”.
Assim,
caracterizado o abuso na utilização da personalidade jurídica,
através de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial (CC,
art. 50), permite-se ao magistrado, no caso concreto, a pedido da
parte interessada (o lesado pela conduta ilícita praticada) ou do
Ministério Público (se participar do processo), desconsiderar a
personalidade da empresa, fazendo cessar a sua autonomia patrimonial,
tornando possível, via de consequência, a penhora de bens
particulares dos sócios, submetendo-os à constrição judicial,
após certificada a insolvência da pessoa jurídica.
Trilhando
esse caminho, o Enunciado 7 da Jornada de Direito Civil cimentou: Enunciado
7: “Só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica
quando houver a prática de ato irregular, e, limitadamente, aos
administradores ou sócios que nela hajam incorrido.”
Como
ressalta Fábio Ulhoa Coelho. Não se confundem, pois, a
desconsideração da personalidade jurídica (que é episódica e
submetida a requisitos específicos) e a despersonalização da
empresa (que implicaria em extinção da empresa).
10.4
As teorias maior e menor da desconsideração da personalidade
jurídica
Partindo
de um prisma, a teoria maior propugna que a desconsideração da
personalidade jurídica somente será possível episodicamente, em
cada caso concreto e que apenas é cabível ignorar a autonomia
patrimonial da pessoa jurídica como uma forma de combate a fraudes e
abusos praticados através dela.
Esta
tese diferencia, com nitidez, a teoria do disregard de outras figuras
jurídicas que imponham a responsabilização pessoal do sócio,
como, por exemplo, a responsabilidade por ato de má gestão nas
sociedades anônimas ou os casos de responsabilização solidária
entre o sócio e a empresa.
A
teoria maior subjetiva estabelece a premente necessidade de
demonstração da fraude ou do abuso com a intenção deliberada de
prejudicar terceiros ou fraudar a lei.
Já a
teoria maior objetiva está centrada mais nos aspectos funcionais do
instituto do que na intenção do sócio. Assim o fundamento da
desconsideração seria a disfunção da empresa, causada não
somente através do elemento subjetivo, mas, por igual, através de
circunstâncias desatreladas da vontade, como a confusão patrimonial
ou a desorganização societária.
De
outra banda, a teoria menor trata como desconsideração da
personalidade jurídica toda e qualquer hipótese de comprometimento
do patrimônio pessoal do sócio por obrigação da empresa.
Fundamenta o seu cerne no simples prejuízo do credor para afastar a
autonomia patrimonial da pessoa jurídica.
Embora
a distância entre as teorias seja considerável, o ordenamento
jurídico brasileiro abraça em certas hipóteses a teoria maior da
desconsideração e, noutros casos, a teoria menor, terminando por
conferir uma certa confusão conceitual ao instituto, que, em última
análise, adquire uma amplitude considerável.
Ilustrando
a matéria, veja-se que o Código Civil, em seu art. 50, optou pela
adoção da teoria maior objetiva, enquanto o Código de Defesa do
Consumidor, no § 5o do seu art. 28, se perfilhou à teoria menor, ao
chamar de desconsideração a possibilidade de atribuir
responsabilidade ao sócio, em razão de prejuízo causado ao
consumidor pela pessoa jurídica, quando a empresa foi insolvente
(isto é, pela simples ausência de patrimônio suficiente para
honrar a dívida), independentemente de qualquer ato abusivo ou
fraudulento praticado por ele.
“Responsabilidade
civil e Direito do Consumidor. Shopping Center de Osasco-SP.
Explosão. Consumidores. Danos materiais e morais. Ministério
Público. Legitimidade ativa. Pessoa jurídica Desconsideração.
Teoria maior e teoria menor. Limites da responsabilização dos
sócios...
A
teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico
brasileiro, não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar
a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações.
Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a
demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da
desconsideração) ou a demonstração de confusão patrimonial
(teoria objetiva da desconsideração). A teoria menor da
desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico
excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental,
incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o
pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de
desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. Para a teoria
menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não
pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica,
mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes
demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não
exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa
por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica. A
aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de
consumo está calcada na exegese autônoma do § 5o do art. 28 do
CDC, porquanto a incidência desse dispositivo não se subordina à
demonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado,
mas apenas à prova de causar, a mera existência da pessoa jurídica,
obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”
(STJ, Ac. 3a T., REsp.279.273/SP, rel. Min. Fátima Nancy Andrighi,
j. 4.12.03).
10.5
Requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica
De
acordo com o art. 50 do Código Civil, é possível desconsiderar a
personalidade jurídica, por ato judicial, em caso de abuso de
direito caracterizado por i) desvio de finalidade ou ii) confusão
patrimonial, deixando antever uma opção explícita pela teoria
maior objetiva da desconsideração da personalidade jurídica, não
perquirindo de elementos de natureza subjetiva (não se discute o
grau de intenção fraudulenta dos sócios).
O
desvio de finalidade tem ampla conotação e sugere uma fuga dos
objetivos sociais da pessoa jurídica, deixando um rastro de
prejuízo, direto ou indireto, para terceiros ou mesmo para outros
sócios da empresa.
A
outro giro, a confusão patrimonial pode ser caracterizada em
hipóteses diversas, nas quais o sócio utiliza o patrimônio da
pessoa jurídica para realizar pagamentos pessoais e vice-versa,
atentando contra a separação das atividades entre empresa e sócio.
Conquanto
dispensado o elemento subjetivo, é certa e induvidosa a necessidade
de demonstração do abuso, explicitado por desvio de finalidade ou
por confusão patrimonial. Bem por isso, a simples e isolada
ocorrência de uma irregularidade não é, por si só, suficiente
para ensejar a desconsideração.
Não
é requisito para a obtenção da desconsideração a comprovação
da insolvência da pessoa jurídica. .. É que a desconsideração
pode ser utilizada com finalidade preventiva, como mecanismo de
evitar futuras fraudes, e não apenas como um meio de recomposição
de danos já causados. Não se pode exigir, pois, a prova da efetiva
insolvência.
Ademais,
é firme o entendimento, já cimentado no Enunciado 7 da Jornada de
Direito Civil, acerca da necessidade de limitação do alcance
subjetivo da desconsideração, com o fito de obstar o sacrifício de
sócios que não têm qualquer poder de administração. Veja-se o
teor do Enunciado 7: “só se aplica a desconsideração da
personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular e,
limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam
incorridos”.
Acrescente-se
que, em sede consumerista, a partir da dicção do art. 28 da
legislação protetiva do consumidor, há maior amplitude para a
aplicação da teoria do disregard, sendo possível a retirada do véu
societário em diversas situações, dentre as quais: i) o abuso de
direito; ii) o excesso de poder; iii) a infração da lei; iv) o fato
ou ato ilícito; v) a violação dos estatutos ou do contrato social;
vi) ou mesmo pela falência, estado de insolvência, encerramento ou
inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
Não
fosse bastante, o § 5º do art 28 do Código de Defesa do Consumidor
autoriza, ainda, que a personalidade da pessoa jurídica venha a ser
desconsiderada quando for, de alguma forma, obstáculo ao
ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Trata-se,
assim, da possibilidade de aplicação da disregard doctrine mediante
apenas a impossibilidade de ressarcimento do dano com o patrimônio
da empresa, ampliando significativamente as hipóteses de cabimento
da teoria.
A
partir do princípio da confiança, acolhido pelo Código do
Consumidor (arts. 4º e 6º, VI), sobreleva garantir não só a
qualidade dos produtos e serviços disponibilizados na sociedade
brasileira, mas, por igual, a efetiva reparação de danos
eventualmente sofridos por consumidores, ainda que, para tanto, se
desconsidere a autonomia da personalidade jurídica empresarial.
10.6
A desconsideração da personalidade jurídica no Direito brasileiro
No
Brasil, o ponto de partida da teoria do disregard foi a divulgação,
no início da década de 70, da monografia do alemão Rolf Serick,
traduzida para o idioma italiano com o título de Forma e realtà
della persona giuridica (Milano: Giuffrè, 1966), pelo Professor
paranaense Rubens Requião, através de embrionário artigo publicado
na Revista dos Tribunais (410:11 e ss.), intitulado “Abuso de
Direito e Fraude através da Personalidade Jurídica”.
É
cediço que o Código Civil de 1916 não tratava da desconsideração
da personalidade da pessoa jurídica, vigorando de forma absoluta e
ilimitada o princípio da separação, pelo qual a pessoa jurídica
tinha patrimônio e personalidade distintos de seus membros (art.
20).
Apesar
da omissão do direito positivo, nas sendas do seguro balizamento
doutrinário que era emprestado à matéria, alguns provimentos
jurisprudenciais começaram a acatar a desconsideração eventual da
personalidade jurídica, ainda que sem base legal específica.
O
movimento, então, passa a repercutir em sede legislativa. .. A Lei
no 4.591/64, em seu art. 66, parágrafo único, permite que se
alcance o responsável pelo empreendimento, imputando-lhe
responsabilidade por danos causados pela incorporação. Também o
Código Tributário Nacional fez menção à responsabilização dos
sócios por conduta praticada com o véu da pessoa jurídica (art.
135).
Foi
com a Lei no 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor que a
teoria ganhou, efetivamente, assento no direito positivo, conforme a
regra esculpida no seu art. 28.
A Lei
no 8.884/94 – Lei Antitruste, em seu art. 18, repetindo, em linhas
gerais, a regra da legislação consumerista, permite a
desconsideração, além dos casos de abuso, ilícito ou violação
estatutária, por conta de insolvência empresarial.
A Lei
no 9.605/98, que implementa a proteção ao meio ambiente, em seu
art. 4o, também autoriza a desconsideração da personalidade
jurídica sempre que constituir “obstáculo ao ressarcimento de
prejuízos causados à qualidade do meio ambiente”. Nitidamente,
são opções expressas pela teoria menor da desconsideração.
Com a
edição do Código Civil de 2002, a disregard theory ganha os
contornos gerais do Direito Privado, nos termos do art. 50. O Código
Civil, apesar de não acolher expressamente a teoria do levantamento
do véu, consagra os seus princípios norteadores, ampliando as
hipóteses de aplicação do instituto ao vislumbrar o abuso da
personalidade nas hipóteses de desvio de finalidade ou confusão
patrimonial, conectando-se diretamente à função social da empresa
(CF, arts. 5o, XXIII, e 170, III).
Art.
50: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado
pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz
decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando
lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e
determinadas relações de obrigações sejam estendidas aos bens
particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”
O
Enunciado 51 da Jornada de Direito Civil esclarece que “a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica – ‘disregard
doctrine’ – fica positivada no Código Civil, mantidos os
parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção
jurídica sobre o tema”, deixando antever que o regramento expresso
no Código Civil não afeta a evolução jurídica da matéria, nem
tampouco as normas específicas do Código de Defesa do Consumidor,
da Lei Antitruste e da Lei Ambiental. Ao revés, é preciso
compatibilizá-las, evidenciando uma atuação subsidiária da Lei
Civil em tais hipóteses, a partir de verdadeiro diálogo de
subsidiariedade das fontes.
De
qualquer modo, a desconsideração é medida extrema, excepcional,
somente admitida episodicamente, quando presentes os requisitos
legais. É o que reconhece, inclusive, o Enunciado 146 da Jornada de
Direito Civil: “nas relações civis, interpretam-se
restritivamente os parâmetros de desconsideração da personalidade
jurídica previstos no art. 50 (desvio de finalidade ou confusão
patrimonial)”.
10.7
Desconsideração inversa
Explicando
o fenômeno da desconsideração às avessas, Luiz Paulo Vieira de
Carvalho defende a possibilidade de “utilização da
desconsideração da personalidade jurídica visando alcançar os
bens da própria sociedade, mas em decorrência de atos praticados
por terceiros (sócios)”, nas hipóteses em que os sócios atuaram
“ostensivamente ocultando os seus bens na sociedade”.
O
Enunciado 283 da Jornada de Direito Civil abraçou a orientação da
nossa melhor doutrina, reconhecendo ser “cabível a desconsideração
da personalidade jurídica denominada ‘inversa’ para alcançar
bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou
desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiro”.
Sem
dúvida, o campo fecundo para a desconsideração inversa é o
Direito de Família, sendo possível exemplificar com a possibilidade
de um cônjuge ou companheiro adquirir bens valiosos, com recursos
próprios, e registrá-los em nome de uma pessoa jurídica que,
eventualmente, tenha o controle, pessoalmente ou por terceiro
(“laranja” ou “testa de ferro”). Em casos como este, é
possível responsabilizar a sociedade pelo valor devido ao outro
cônjuge ou companheiro, a título de meação .
10.8
O caráter episódico do disregard doctrine
Observe-se
que o afastamento da personalidade é temporário e eventual, podendo
a pessoa jurídica voltar a funcionar (desde que tenha condições
para tanto), após o ressarcimento dos prejudicados.
Nesse
passo, fácil é perceber o caráter episódico da desconsideração
da personalidade jurídica, que deverá ser reconhecida em cada caso
concreto, explicitado, pelo menos, um dos requisitos legalmente
exigidos. Com isso, inclusive, repisa-se, concretamente, a
impossibilidade de confundir a desconsideração da personalidade
jurídica com a despersonalização da empresa, que implicaria no seu
aniquilamento.
10.9
A desconsideração e as offshore companies
Expediente
muito comum no mundo dos negócios, as offshore companies são
sociedades sediadas em países com política de tributação menos
robusta e facilitação na constituição de sociedades (os chamados
“paraísos fiscais”), cujo capital social é representado por
ações ao portador (não exigindo a affectio societatis e permitindo
circulação mais intensa do capital), com amplo objeto social.
Poder-se-ia
indagar: a simples constituição de uma offshore company já
permitiria desconsiderar a personalidade jurídica por abuso do
direito societário? A resposta só pode ser negativa.
Com
efeito, a offshore company pode ser utilizada legitimamente, sem
abuso do direito de associação, valendo-se da própria globalização
e da consequente integração entre os mercados econômicos. Ou seja,
pode não ser instrumento fraudulento.
Com
Fábio Ulhoa Coelho, “as offshore companies são sociedades
empresárias constituídas e estabelecidas em país estrangeiro. Não
são necessariamente fraudulentas, mas podem servir, como todas as
demais sociedades, de instrumento para fraudes e abusos. Nesse caso,
a exemplo dos demais, podem ter a sua autonomia patrimonial
desconsiderada”.
Sintetizando,
os mesmos pressupostos utilizados para a admissão da disregard
theory serão exigidos para a sua aplicação nas offshores
companies, não havendo presunção de abuso de direito.
10.10
Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica
De
logo, é preciso delimitar a legitimidade para requerer a medida.
Conforme previsão expressa da lei (CC, art. 50), a disregard theory
depende da necessária iniciativa da parte (CPC, arts. 2o e 262) ou
do Ministério Público, quando estiver intervindo no processo como
autor ou mesmo como fiscal da lei (nas hipóteses listadas no art.
82, CPC), sendo vedado ao Estado-Juiz desconsiderar ex officio,
sponte sua, a personalidade de uma pessoa jurídica.
Um
campo bastante fecundo para vislumbrar o requerimento de
desconsideração pelo Parquet é o das ações coletivas, podendo
ser lembradas as hipóteses de ações civis públicas por dano
ambiental ou por ato de improbidade administrativa.
Já
se consolidou entendimento no Enunciado 285 da Jornada de Direito
Civil: “a teoria da desconsideração, prevista no art. 50 do
Código Civil, pode ser invocada pela pessoa jurídica em seu favor”.
Com vistas a obter a responsabilização pessoal de um de seus sócios
que, eventualmente, tenha abusado de sua condição, causando
prejuízo à própria empresa.
É
desnecessário a propositura da ação contra os instituidores em
litisconsórcio com a pessoa jurídica, visto que, a parte que será
atingida pelos efeitos da sentença (ou seja, os sócios) já estará
acompanhando o procedimento, acobertada pelo manto societário,
estando ciente de todo o seu andamento.
No
que concerne ao momento adequado para a aplicação da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica, cumpre observar que,
provada a concreta confusão patrimonial ou o ato abusivo, já está
autorizado o Poder Judiciário a fazer incidir sobre os bens dos
sócios a responsabilidade pelas dívidas assumidas em nome da
sociedade.
A
Jornada de Direito Civil recomenda que “é cabível a aplicação
da desconsideração da personalidade jurídica, inclusive na fase de
execução”, consoante o verbete aprovado no Enunciado 60.
A
penhora (inclusive on line) no patrimônio pessoal do sócio somente
é possível em caráter subsidiário (depois de esgotadas todas as
possibilidades de execução direta contra a empresa) e depois de
respeitado o direito de ampla defesa e de contraditório, garantidos
constitucionalmente. Isto não impede, todavia, que o magistrado,
inclusive de ofício, se valha de medidas cautelares, quando
necessário, para assegurar o resultado útil, futuro, do processo,
em casos nos quais o sócio já está dilapidando o patrimônio ou há
risco disso.
10.11
Desconsideração da personalidade jurídica e os atos ultra vires
Ultra
vires é a expressão utilizada comumente, no âmbito empresarial,
para designar os atos praticados além dos limites (forças) do
contrato social. Isto é, é o ato que extrapola o objeto social da
empresa, designando uma situação de fato “em que o representante
legal da sociedade a obriga em atividade completamente diversa da
declarada em seu objeto social”, como expõe Mônica Gusmão.
Já
se chegou a afirmar que, considerado o abuso presente no ato ultra
vires, a empresa não deveria responder pelos danos causados a
terceiros, independentemente da boa-fé do terceiro – que poderia,
ou não, conhecer o contrato social da empresa e saber que o ato
extravasava os seus limites societários.
Efetivamente,
com esteio na boa-fé (objetiva e subjetiva) e na própria teoria da
aparência, deve se afirmar que a empresa se obriga pelos atos ultra
vires praticados pelos seus sócios e administradores. Apenas será
possível afastar essa responsabilidade se provar que o terceiro
tinha inequívoca ciência de que o ato era estranho ao seu objeto
social.
Pois
bem, a simples prática de um ato ultra vires não implicará em
desconsideração da personalidade jurídica, cujos requisitos
específicos (abuso de direito, caracterizado por desvio de
finalidade ou confusão patrimonial) podem não se apresentar na
caracterização de um ato ultra vires, extrapolando os limites do
objeto societário.
10.12
A desconsideração expansiva da personalidade jurídica
Trata-se
de nomenclatura utilizada para designar a possibilidade de
desconsiderar uma pessoa jurídica para atingir a personalidade do
sócio eventualmente oculto, que, não raro, está escondido na
empresa controladora.
O
exemplo construído por Mônica Gusmão é interessante: “em ação
de execução em face da Sociedade A, pela Sociedade B, a exeqüente
verifica a dissolução irregular da executada, e tem ciência de que
a Sociedade C, constituída por alguns sócios da Sociedade A, exerce
suas atividades no mesmo domicílio da executada, dissolvida
irregularmente. Nesse caso, admite-se a desconsideração da
personalidade jurídica da Sociedade C, de forma expansiva, para
atingir o patrimônio dos sócios ocultos, verdadeiros
‘testas-de-ferro’ da sociedade executada, a fim de coibir
eventual fraude.”
A
orientação jurisprudencial é no sentido de admitir a
desconsideração expansiva, quando provada a presença do sócio
oculto.
10.13
Aplicação da teoria do disregard no Direito das Famílias
Diante
do que foi exposto, é possível asseverar, sem medo de erro, que a
disregard doctrine está vocacionada para impedir o abuso ou a fraude
através do uso indevido da personalidade das pessoas jurídicas.
Ora,
nas relações familiares (casamento, união estável, obrigação
alimentar etc.), não raro, um estranho e perverso sentimento
vingativo aflora nas pessoas, fazendo com que sejam utilizadas as
pessoas jurídicas para dar espaço a fraudes pelas quais se intenta
prejudicar o ex-cônjuge ou o ex-companheiro que pretende partilhar o
patrimônio na dissolução da relação afetiva, o irmão que deseja
promover a partilha do patrimônio recebido em sucessão hereditária
ou, até mesmo, o filho que cobra pensão alimentícia.
Por
isso, impõe-se aplicar a consagrada teoria do abuso da personalidade
jurídica, retirando o véu societário, quando resultam evidentes
condutas praticadas pela empresa para, concretamente, prejudicar
terceiros, máxime quando se tratar de abuso praticado pelo marido,
companheiro ou genitor em detrimento dos legítimos interesses de seu
cônjuge, companheiro ou filho .
Nesta
linha de intelecção, as nossas Casas Judiciais vêm se
sensibilizando com o problema, admitindo a desconsideração da
personalidade da pessoa jurídica em relações de Direito das
Famílias, como demonstra este decisum:
“Tendo
tocado na partilha consensual à mulher/autora o único bem
registrado em nome da sociedade comercial, evidente o dano que a
impede de exercer seu direito à meação. Aplicação da teoria da
‘disregard’ para determinar a transferência da titularidade do
imóvel à autora, conforme acordado na separação consensual, com
sentença homologatória” (TJ/RS, Ac. unân. 8a Câm. Cív., ApCív.
70005866660, rel. Des. José S. Trindade, j. 3.4.03, DOERS 17.4.03,
in RBDFam 17:114).
10.14
Aplicação da teoria do disregard no Direito das Sucessões
Nas
palavras precisas do argentino Guillermo Borda, ocorre com certa
frequência a utilização de pessoas jurídicas por pais que
pretendem beneficiar alguns de seus filhos em detrimento de outros,
tentando alcançar objetivo contrário à lei (frustração do
direito à herança). Aqui encontra-se o substrato axiológico da
aplicação da desconsideração no direito sucessório, servindo
como “ferramenta de que pode se valer o prejudicado para obter o
reconhecimento de seu direito integral à herança” .
10.15
Aplicação da teoria do disregard no âmbito do Direito do Trabalho
Há
muito, renomados juristas sustentaram a existência de previsão
específica na própria Consolidação das Leis do Trabalho,
acolhendo a possibilidade de desconsideração da personalidade
jurídica da empresa. A alusão diz respeito ao art. 2o, § 2o, do
Texto Consolidado, que, segundo parcela da doutrina, parecia “aplicar
a teoria da desconsideração” para afirmar que a personificação
societária não seria óbice à proteção do trabalhador, que,
naturalmente, é hipossuficiente. Diz o citado dispositivo legal
(CLT, art. 2o, § 2o), in litteris: “sempre que uma ou mais
empresas, tendo embora, cada uma delas, personalidade jurídica,
própria estiverem sob a direção, controle ou administração de
outra constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra
atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de
emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma
das subordinadas”.
Venia
maxima concessa, a afirmação de que o mencionado dispositivo legal
estaria a acatar a teoria da desconsideração da personalidade
jurídica é equivocada, propiciando indevida confusão conceitual.
Com
efeito, o § 2º do art. 2º da Consolidação das Leis do Trabalho
cuida, em verdade, de hipótese de responsabilidade solidária entre
empresas componentes de grupos econômicos .
Independentemente
da ocorrência de abuso no exercício da personalidade jurídica,
marcado pela fraude ou pela confusão patrimonial, é possível
atingir os bens do sócio ou da empresa controladora ou integrante do
grupo econômico. O fundamento dessa responsabilização solidária,
portanto, é, tão somente, a ausência de bens executáveis para
garantir os interesses do trabalhador.
Dessa
maneira, a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica
no âmbito das relações de trabalho está fundamentada no art. 50
do Código Civil de 2002, aplicável no Direito do Trabalho em face
do que dispõe o art. 8o da Consolidação das Leis do Trabalho,
afastando-se, em definitivo, a falsa impressão de que a sua base
legal seria o art. 2º, § 2º, desse diploma, que, em verdade,
consagra hipótese de responsabilização solidária.
Outrossim,
não se ignore que a responsabilidade do sócio, decorrente da
disregard doctrine, reclama a prévia formação do devido processo
legal, garantido constitucionalmente (CF/88, art. 5o, LV), com a sua
cientificação e a possibilidade de defesa, através de procedimento
apenso à execução trabalhista, quando provada a inexistência de
bens penhoráveis da própria empresa-reclamada.
10.16
Aplicação da teoria do disregard no âmbito da Administração
Pública
Apesar
do silêncio legislativo, é possível sustentar, com forte
argumentação, a incidência da desconsideração da personalidade
jurídica também na esfera da Administração Pública, com o
propósito do obstar prejuízo ao Erário ou à qualidade do serviço
público, quando estiver presente um dos requisitos tipificados na
Lei Civil. O fundamento é óbvio: preservar o interesse público.
Um
bom exemplo pode ser apresentado, demonstrando a necessidade de
impedir que pessoas jurídicas que são formadas fraudulenta ou
abusivamente venham a participar de certames licitatórios e celebrem
contratos administrativos, afrontando aos mais elementares
princípios, como a moralidade.
Com
isso, independentemente de decisão judicial, é possível ao Poder
Público desconsiderar a personalidade jurídica para obstar que
sociedades de fachada celebrem contratos com o Estado ou declarar a
ineficácia de determinados atos que impliquem em prejuízo aos
interesses públicos ou violação a texto legal. Sempre, porém,
dependendo da prova de ocorrência de um dos requisitos contemplados
no art. 50 do Código Civil.
Pronunciando-se
favoravelmente à possibilidade de desconsideração na seara
administrativa, o Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade
de confirmar a tese aqui esposada:
“A
constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os
mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra
declarada inidônea para licitar com a Administração Pública
Estadual, com o objetivo de burlar a aplicação da sanção
administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de
Licitações, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os
efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída.
A
Administração Pública pode, em observância ao princípio da
moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses
públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de
sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que
facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em
processo administrativo regular” (STJ, ROMS 15166/BA, rel. Min.
Castro Meira, DJU 8.9.03, p. 262).
10.17
Desconsideração e a declaração de indisponibilidade de bens na
liquidação extrajudicial de instituições financeiras
A Lei
no 6.024/74, ao disciplinar a intervenção e liquidação
extrajudicial de instituições financeiras, em procedimento que se
inicia através de resolução do Banco Central do Brasil, prevê a
indisponibilidade dos bens pertencentes aos administradores
adquiridos nos doze meses antecedentes ao ato liquidatório e o
arresto para os bens mais antigos.
Acrescente-se,
inclusive, que, além da indisponibilidade de bens, os
administradores podem responder por ação de responsabilidade, com o
fito de ressarcir eventuais prejuízos dos credores (art. 46 da Lei
no 7.913/91).
Surge,
nessa ambientação, interessante problema: é possível estender a
indisponibilidade de bens, mencionada no texto legal indicado, aos
casos de desconsideração da personalidade jurídica?
Conquanto
alguns precedentes jurisprudenciais admitam a indisponibilidade de
bens dos sócios em hipóteses de desconsideração, não parece a
melhor solução. Com efeito, a indisponibilidade dos bens encontra
amparo em disposição expressa de lei (Lei no 6.024/74), “não
tendo cabimento nos casos em que o legislador permanece silente”,
conforme entendimento esposado por Daniela Storry Lins.
10.18
Subcapitalização e desconsideração da personalidade jurídica
A
constatação da insuficiência de capital próprio ao
desenvolvimento das atividades negociais (subcapitalização) é
importante aspecto da pessoa jurídica que tem pertinência à
disregard doctrine. É que uma empresa subcapitalizada (com capital
insuficiente para as atividades desempenhadas) implica em evidente
tentativa de reduzir os riscos intrínsecos à atividade. Afinal, o
capital social da pessoa jurídica deve ser compatível à atividade
desenvolvida, sob pena de prejuízo de terceiros e fraude.
Em
casos tais, nos quais ocorre infracapitalização de uma sociedade,
há de se aplicar a desconsideração da personalidade jurídica com
base no abuso praticado pelo sócio que pretendeu fugir dos prováveis
riscos do negócio, atendido um de seus pressupostos legais.
Sem
dúvida, a falta de capitalização adequada à real atividade
societária é fator suficiente para demonstrar o abuso, ensejando a
desconsideração da personalidade jurídica, pois é intuitivo que o
direito de associação pressupõe a correta capitalização,
garantindo interesses de terceiros.
10.19
Desconsideração indireta da personalidade jurídica
Não
é raro, infelizmente, encontrar fraudes e abusos cometidos por
empresas controladoras, utilizando da personalidade jurídica da
empresa controlada (ou coligada, subsidiária integral etc.) para
prejuízo de terceiros ou para obtenção de vantagens indevidas.
Nessa
hipótese, encontra-se a chamada desconsideração indireta da
personalidade jurídica, através da qual é permitido o levantamento
episódico do véu protetivo da empresa controlada para
responsabilizar a empresa- controladora (ou coligada...) por atos
praticados com aquela de modo abusivo ou fraudulento.
- Referência
- Saiba mais
- Desconsideração da Personalidade Juridica nas Relações de Consumo, na Ótica do Direito Empresarial
Bons estudos!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe aqui seu comentário!