sexta-feira, 10 de abril de 2015

Desconsideração da Personalidade Jurídica (Disregrad Doctrine)

(Fichamento Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, 2011)


 10  Desconsideração da Personalidade Jurídica (Disregrad Doctrine)

 10.1   Noções e conceitos fundamentais

O ordenamento jurídico confere personalidade jurídica às empresas, permitindo que formem uma esfera jurídica e patrimonial autônoma e independente, apartada do patrimônio individual de cada um de seus sócios. É estabelecida, assim, uma espécie de blindagem patrimonial, através da qual a pessoa jurídica responde pelas suas dívidas e obrigações com o seu próprio patrimônio.

Todavia, com os crescentes abusos praticados por sócios sem escrúpulos, que utilizavam a estrutura autônoma e independente da pessoa jurídica para a prática de negócios fraudulentos e desvinculados da finalidade desta, afastando-se da responsabilidade, a jurisprudência e a doutrina começaram a perceber a necessidade de buscar mecanismos ágeis de atingir o patrimônio do sócio, em favor dos prejudicados de boa-fé, inibindo a utilização da pessoa jurídica como escudo para a prática de atos ilícitos ou abusos.

Ora, a partir do momento em que resta evidenciado o abuso do direito associativo, a fraude imposta a terceiros através do uso do véu protetivo da pessoa jurídica, o desvio da finalidade almejada pela empresa ou mesmo a (tão comum) promiscuidade entre as esferas patrimoniais do sócio e da empresa, configura-se o uso indevido (irregular) do direito de se associar, autorizando-se a desconsideração do princípio da separação, permitindo que o credor busque diretamente no patrimônio dos sócios a satisfação da obrigação que não pode ser atendida pelo patrimônio da empresa.

“Para que o patrimônio do sócio responda pelas dívidas da sociedade, mediante a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, é fundamental que o credor demonstre de forma inequívoca que aquele agiu com excesso de poderes, infração da lei ou do contrato social, caracterizando atos de malícia e prejuízos à empresa, eis que a ‘disregard doctrine’ é exceção e não a regra geral, devendo sempre prevalecer a idéia de pessoa jurídica quando forem obedecidos os limites no ordenamento para a sua utilização” (1o TACív.SP, Ac. 8a Câm., AgInst. 1.058.965-4, rel. Juiz Carlos Alberto Lopes, j. 5.12.01, in RT 799:274).

10.2   Breve referência histórica

Originada no direito anglo-saxão, a desconsideração da personalidade jurídica foi bastante desenvolvida a partir da colaboração dos tribunais ingleses e norte-americanos, com o escopo de obstar os abusos praticados sob o véu da autonomia da pessoa jurídica, mascarando interesses particulares dos sócios.

As origens remotas do instituto, assim, vêm sendo fincadas em precedentes jurisprudenciais colhidos no sistema do common law. Vem se creditando as primeiras referências a alguns célebres precedentes históricos. Um deles é o caso Salomon v. Salomon & Co. Ltd., julgado em 1897 pela House of Lords, última instância inglesa, com relatoria do Lord Macnaughten, porém com voto vencedor do Lord Halisbury. Outro precedente é o caso Bank of United States v. Deveaux, relatado pelo conhecido Juiz Marshall, da Corte Suprema norte-americana, em 1809. Outrossim, o episódio United States vs Lehigh Valley RailRoad, de 1910, também serve como registro histórico da disregard doctrine.

 10.3   Noções conceituais

A desconsideração da personalidade jurídica significa, essencialmente, o desprezo episódico (eventual), pelo Poder Judiciário, da personalidade autônoma de uma pessoa jurídica, com o propósito de permitir que os seus sócios respondam com o seu patrimônio pessoal pelos atos abusivos ou fraudulentos praticados sob o véu societário.

Destrinchando tais ideias, com apoio nas palavras de João Baptista de Mello e Souza Neto, quando as empresas são utilizadas “para o fim de fraudar interesses de terceiros, poderão ter sua personalidade jurídica tornada sem efeito perante os prejudicados que, então, poderão investir contra o patrimônio particular dos sócios ou associados”.

Assim, caracterizado o abuso na utilização da personalidade jurídica, através de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial (CC, art. 50), permite-se ao magistrado, no caso concreto, a pedido da parte interessada (o lesado pela conduta ilícita praticada) ou do Ministério Público (se participar do processo), desconsiderar a personalidade da empresa, fazendo cessar a sua autonomia patrimonial, tornando possível, via de consequência, a penhora de bens particulares dos sócios, submetendo-os à constrição judicial, após certificada a insolvência da pessoa jurídica.

Trilhando esse caminho, o Enunciado 7 da Jornada de Direito Civil cimentou: Enunciado 7: “Só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular, e, limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido.”

Como ressalta Fábio Ulhoa Coelho. Não se confundem, pois, a desconsideração da personalidade jurídica (que é episódica e submetida a requisitos específicos) e a despersonalização da empresa (que implicaria em extinção da empresa).

 10.4   As teorias maior e menor da desconsideração da personalidade jurídica

Partindo de um prisma, a teoria maior propugna que a desconsideração da personalidade jurídica somente será possível episodicamente, em cada caso concreto e que apenas é cabível ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica como uma forma de combate a fraudes e abusos praticados através dela.

Esta tese diferencia, com nitidez, a teoria do disregard de outras figuras jurídicas que imponham a responsabilização pessoal do sócio, como, por exemplo, a responsabilidade por ato de má gestão nas sociedades anônimas ou os casos de responsabilização solidária entre o sócio e a empresa.

A teoria maior subjetiva estabelece a premente necessidade de demonstração da fraude ou do abuso com a intenção deliberada de prejudicar terceiros ou fraudar a lei.

Já a teoria maior objetiva está centrada mais nos aspectos funcionais do instituto do que na intenção do sócio. Assim o fundamento da desconsideração seria a disfunção da empresa, causada não somente através do elemento subjetivo, mas, por igual, através de circunstâncias desatreladas da vontade, como a confusão patrimonial ou a desorganização societária. 

De outra banda, a teoria menor trata como desconsideração da personalidade jurídica toda e qualquer hipótese de comprometimento do patrimônio pessoal do sócio por obrigação da empresa. Fundamenta o seu cerne no simples prejuízo do credor para afastar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica. 

Embora a distância entre as teorias seja considerável, o ordenamento jurídico brasileiro abraça em certas hipóteses a teoria maior da desconsideração e, noutros casos, a teoria menor, terminando por conferir uma certa confusão conceitual ao instituto, que, em última análise, adquire uma amplitude considerável. 

Ilustrando a matéria, veja-se que o Código Civil, em seu art. 50, optou pela adoção da teoria maior objetiva, enquanto o Código de Defesa do Consumidor, no § 5o do seu art. 28, se perfilhou à teoria menor, ao chamar de desconsideração a possibilidade de atribuir responsabilidade ao sócio, em razão de prejuízo causado ao consumidor pela pessoa jurídica, quando a empresa foi insolvente (isto é, pela simples ausência de patrimônio suficiente para honrar a dívida), independentemente de qualquer ato abusivo ou fraudulento praticado por ele. 

“Responsabilidade civil e Direito do Consumidor. Shopping Center de Osasco-SP. Explosão. Consumidores. Danos materiais e morais. Ministério Público. Legitimidade ativa. Pessoa jurídica Desconsideração. Teoria maior e teoria menor. Limites da responsabilização dos sócios... 

A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração) ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração). A teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica. A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está calcada na exegese autônoma do § 5o do art. 28 do CDC, porquanto a incidência desse dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar, a mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores” (STJ, Ac. 3a T., REsp.279.273/SP, rel. Min. Fátima Nancy Andrighi, j. 4.12.03). 

 10.5   Requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica

De acordo com o art. 50 do Código Civil, é possível desconsiderar a personalidade jurídica, por ato judicial, em caso de abuso de direito caracterizado por i) desvio de finalidade ou ii) confusão patrimonial, deixando antever uma opção explícita pela teoria maior objetiva da desconsideração da personalidade jurídica, não perquirindo de elementos de natureza subjetiva (não se discute o grau de intenção fraudulenta dos sócios). 

O desvio de finalidade tem ampla conotação e sugere uma fuga dos objetivos sociais da pessoa jurídica, deixando um rastro de prejuízo, direto ou indireto, para terceiros ou mesmo para outros sócios da empresa. 

A outro giro, a confusão patrimonial pode ser caracterizada em hipóteses diversas, nas quais o sócio utiliza o patrimônio da pessoa jurídica para realizar pagamentos pessoais e vice-versa, atentando contra a separação das atividades entre empresa e sócio. 

Conquanto dispensado o elemento subjetivo, é certa e induvidosa a necessidade de demonstração do abuso, explicitado por desvio de finalidade ou por confusão patrimonial. Bem por isso, a simples e isolada ocorrência de uma irregularidade não é, por si só, suficiente para ensejar a desconsideração.

Não é requisito para a obtenção da desconsideração a comprovação da insolvência da pessoa jurídica. .. É que a desconsideração pode ser utilizada com finalidade preventiva, como mecanismo de evitar futuras fraudes, e não apenas como um meio de recomposição de danos já causados. Não se pode exigir, pois, a prova da efetiva insolvência. 

Ademais, é firme o entendimento, já cimentado no Enunciado 7 da Jornada de Direito Civil, acerca da necessidade de limitação do alcance subjetivo da desconsideração, com o fito de obstar o sacrifício de sócios que não têm qualquer poder de administração. Veja-se o teor do Enunciado 7: “só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular e, limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorridos”. 

Acrescente-se que, em sede consumerista, a partir da dicção do art. 28 da legislação protetiva do consumidor, há maior amplitude para a aplicação da teoria do disregard, sendo possível a retirada do véu societário em diversas situações, dentre as quais: i) o abuso de direito; ii) o excesso de poder; iii) a infração da lei; iv) o fato ou ato ilícito; v) a violação dos estatutos ou do contrato social; vi) ou mesmo pela falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. 

Não fosse bastante, o § 5º do art 28 do Código de Defesa do Consumidor autoriza, ainda, que a personalidade da pessoa jurídica venha a ser desconsiderada quando for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Trata-se, assim, da possibilidade de aplicação da disregard doctrine mediante apenas a impossibilidade de ressarcimento do dano com o patrimônio da empresa, ampliando significativamente as hipóteses de cabimento da teoria. 

A partir do princípio da confiança, acolhido pelo Código do Consumidor (arts. 4º e 6º, VI), sobreleva garantir não só a qualidade dos produtos e serviços disponibilizados na sociedade brasileira, mas, por igual, a efetiva reparação de danos eventualmente sofridos por consumidores, ainda que, para tanto, se desconsidere a autonomia da personalidade jurídica empresarial. 

 10.6   A desconsideração da personalidade jurídica no Direito brasileiro

No Brasil, o ponto de partida da teoria do disregard foi a divulgação, no início da década de 70, da monografia do alemão Rolf Serick, traduzida para o idioma italiano com o título de Forma e realtà della persona giuridica (Milano: Giuffrè, 1966), pelo Professor paranaense Rubens Requião, através de embrionário artigo publicado na Revista dos Tribunais (410:11 e ss.), intitulado “Abuso de Direito e Fraude através da Personalidade Jurídica”. 

É cediço que o Código Civil de 1916 não tratava da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, vigorando de forma absoluta e ilimitada o princípio da separação, pelo qual a pessoa jurídica tinha patrimônio e personalidade distintos de seus membros (art. 20). 

Apesar da omissão do direito positivo, nas sendas do seguro balizamento doutrinário que era emprestado à matéria, alguns provimentos jurisprudenciais começaram a acatar a desconsideração eventual da personalidade jurídica, ainda que sem base legal específica.

O movimento, então, passa a repercutir em sede legislativa. .. A Lei no 4.591/64, em seu art. 66, parágrafo único, permite que se alcance o responsável pelo empreendimento, imputando-lhe responsabilidade por danos causados pela incorporação. Também o Código Tributário Nacional fez menção à responsabilização dos sócios por conduta praticada com o véu da pessoa jurídica (art. 135). 

Foi com a Lei no 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor que a teoria ganhou, efetivamente, assento no direito positivo, conforme a regra esculpida no seu art. 28.

A Lei no 8.884/94 – Lei Antitruste, em seu art. 18, repetindo, em linhas gerais, a regra da legislação consumerista, permite a desconsideração, além dos casos de abuso, ilícito ou violação estatutária, por conta de insolvência empresarial. 

A Lei no 9.605/98, que implementa a proteção ao meio ambiente, em seu art. 4o, também autoriza a desconsideração da personalidade jurídica sempre que constituir “obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente”. Nitidamente, são opções expressas pela teoria menor da desconsideração. 

Com a edição do Código Civil de 2002, a disregard theory ganha os contornos gerais do Direito Privado, nos termos do art. 50. O Código Civil, apesar de não acolher expressamente a teoria do levantamento do véu, consagra os seus princípios norteadores, ampliando as hipóteses de aplicação do instituto ao vislumbrar o abuso da personalidade nas hipóteses de desvio de finalidade ou confusão patrimonial, conectando-se diretamente à função social da empresa (CF, arts. 5o, XXIII, e 170, III). 

Art. 50: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidas aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.” 

O Enunciado 51 da Jornada de Direito Civil esclarece que “a teoria da desconsideração da personalidade jurídica – ‘disregard doctrine’ – fica positivada no Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema”, deixando antever que o regramento expresso no Código Civil não afeta a evolução jurídica da matéria, nem tampouco as normas específicas do Código de Defesa do Consumidor, da Lei Antitruste e da Lei Ambiental. Ao revés, é preciso compatibilizá-las, evidenciando uma atuação subsidiária da Lei Civil em tais hipóteses, a partir de verdadeiro diálogo de subsidiariedade das fontes. 

De qualquer modo, a desconsideração é medida extrema, excepcional, somente admitida episodicamente, quando presentes os requisitos legais. É o que reconhece, inclusive, o Enunciado 146 da Jornada de Direito Civil: “nas relações civis, interpretam-se restritivamente os parâmetros de desconsideração da personalidade jurídica previstos no art. 50 (desvio de finalidade ou confusão patrimonial)”. 

 10.7   Desconsideração inversa

Explicando o fenômeno da desconsideração às avessas, Luiz Paulo Vieira de Carvalho defende a possibilidade de “utilização da desconsideração da personalidade jurídica visando alcançar os bens da própria sociedade, mas em decorrência de atos praticados por terceiros (sócios)”, nas hipóteses em que os sócios atuaram “ostensivamente ocultando os seus bens na sociedade”.

O Enunciado 283 da Jornada de Direito Civil abraçou a orientação da nossa melhor doutrina, reconhecendo ser “cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada ‘inversa’ para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiro”. 

Sem dúvida, o campo fecundo para a desconsideração inversa é o Direito de Família, sendo possível exemplificar com a possibilidade de um cônjuge ou companheiro adquirir bens valiosos, com recursos próprios, e registrá-los em nome de uma pessoa jurídica que, eventualmente, tenha o controle, pessoalmente ou por terceiro (“laranja” ou “testa de ferro”). Em casos como este, é possível responsabilizar a sociedade pelo valor devido ao outro cônjuge ou companheiro, a título de meação .

 10.8   O caráter episódico do disregard doctrine

Observe-se que o afastamento da personalidade é temporário e eventual, podendo a pessoa jurídica voltar a funcionar (desde que tenha condições para tanto), após o ressarcimento dos prejudicados. 

Nesse passo, fácil é perceber o caráter episódico da desconsideração da personalidade jurídica, que deverá ser reconhecida em cada caso concreto, explicitado, pelo menos, um dos requisitos legalmente exigidos. Com isso, inclusive, repisa-se, concretamente, a impossibilidade de confundir a desconsideração da personalidade jurídica com a despersonalização da empresa, que implicaria no seu aniquilamento. 

 10.9   A desconsideração e as offshore companies

Expediente muito comum no mundo dos negócios, as offshore companies são sociedades sediadas em países com política de tributação menos robusta e facilitação na constituição de sociedades (os chamados “paraísos fiscais”), cujo capital social é representado por ações ao portador (não exigindo a affectio societatis e permitindo circulação mais intensa do capital), com amplo objeto social. 

Poder-se-ia indagar: a simples constituição de uma offshore company já permitiria desconsiderar a personalidade jurídica por abuso do direito societário? A resposta só pode ser negativa. 

Com efeito, a offshore company pode ser utilizada legitimamente, sem abuso do direito de associação, valendo-se da própria globalização e da consequente integração entre os mercados econômicos. Ou seja, pode não ser instrumento fraudulento.

Com Fábio Ulhoa Coelho, “as offshore companies são sociedades empresárias constituídas e estabelecidas em país estrangeiro. Não são necessariamente fraudulentas, mas podem servir, como todas as demais sociedades, de instrumento para fraudes e abusos. Nesse caso, a exemplo dos demais, podem ter a sua autonomia patrimonial desconsiderada”.

Sintetizando, os mesmos pressupostos utilizados para a admissão da disregard theory serão exigidos para a sua aplicação nas offshores companies, não havendo presunção de abuso de direito. 

 10.10   Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica

De logo, é preciso delimitar a legitimidade para requerer a medida. Conforme previsão expressa da lei (CC, art. 50), a disregard theory depende da necessária iniciativa da parte (CPC, arts. 2o e 262) ou do Ministério Público, quando estiver intervindo no processo como autor ou mesmo como fiscal da lei (nas hipóteses listadas no art. 82, CPC), sendo vedado ao Estado-Juiz desconsiderar ex officio, sponte sua, a personalidade de uma pessoa jurídica. 

Um campo bastante fecundo para vislumbrar o requerimento de desconsideração pelo Parquet é o das ações coletivas, podendo ser lembradas as hipóteses de ações civis públicas por dano ambiental ou por ato de improbidade administrativa. 

Já se consolidou entendimento no Enunciado 285 da Jornada de Direito Civil: “a teoria da desconsideração, prevista no art. 50 do Código Civil, pode ser invocada pela pessoa jurídica em seu favor”. Com vistas a obter a responsabilização pessoal de um de seus sócios que, eventualmente, tenha abusado de sua condição, causando prejuízo à própria empresa. 

É desnecessário a propositura da ação contra os instituidores em litisconsórcio com a pessoa jurídica, visto que, a parte que será atingida pelos efeitos da sentença (ou seja, os sócios) já estará acompanhando o procedimento, acobertada pelo manto societário, estando ciente de todo o seu andamento. 

No que concerne ao momento adequado para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, cumpre observar que, provada a concreta confusão patrimonial ou o ato abusivo, já está autorizado o Poder Judiciário a fazer incidir sobre os bens dos sócios a responsabilidade pelas dívidas assumidas em nome da sociedade. 

A Jornada de Direito Civil recomenda que “é cabível a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, inclusive na fase de execução”, consoante o verbete aprovado no Enunciado 60.

A penhora (inclusive on line) no patrimônio pessoal do sócio somente é possível em caráter subsidiário (depois de esgotadas todas as possibilidades de execução direta contra a empresa) e depois de respeitado o direito de ampla defesa e de contraditório, garantidos constitucionalmente. Isto não impede, todavia, que o magistrado, inclusive de ofício, se valha de medidas cautelares, quando necessário, para assegurar o resultado útil, futuro, do processo, em casos nos quais o sócio já está dilapidando o patrimônio ou há risco disso. 

 10.11   Desconsideração da personalidade jurídica e os atos ultra vires

Ultra vires é a expressão utilizada comumente, no âmbito empresarial, para designar os atos praticados além dos limites (forças) do contrato social. Isto é, é o ato que extrapola o objeto social da empresa, designando uma situação de fato “em que o representante legal da sociedade a obriga em atividade completamente diversa da declarada em seu objeto social”, como expõe Mônica Gusmão.

Já se chegou a afirmar que, considerado o abuso presente no ato ultra vires, a empresa não deveria responder pelos danos causados a terceiros, independentemente da boa-fé do terceiro – que poderia, ou não, conhecer o contrato social da empresa e saber que o ato extravasava os seus limites societários. 

Efetivamente, com esteio na boa-fé (objetiva e subjetiva) e na própria teoria da aparência, deve se afirmar que a empresa se obriga pelos atos ultra vires praticados pelos seus sócios e administradores. Apenas será possível afastar essa responsabilidade se provar que o terceiro tinha inequívoca ciência de que o ato era estranho ao seu objeto social.

Pois bem, a simples prática de um ato ultra vires não implicará em desconsideração da personalidade jurídica, cujos requisitos específicos (abuso de direito, caracterizado por desvio de finalidade ou confusão patrimonial) podem não se apresentar na caracterização de um ato ultra vires, extrapolando os limites do objeto societário. 

 10.12   A desconsideração expansiva da personalidade jurídica

Trata-se de nomenclatura utilizada para designar a possibilidade de desconsiderar uma pessoa jurídica para atingir a personalidade do sócio eventualmente oculto, que, não raro, está escondido na empresa controladora. 

O exemplo construído por Mônica Gusmão é interessante: “em ação de execução em face da Sociedade A, pela Sociedade B, a exeqüente verifica a dissolução irregular da executada, e tem ciência de que a Sociedade C, constituída por alguns sócios da Sociedade A, exerce suas atividades no mesmo domicílio da executada, dissolvida irregularmente. Nesse caso, admite-se a desconsideração da personalidade jurídica da Sociedade C, de forma expansiva, para atingir o patrimônio dos sócios ocultos, verdadeiros ‘testas-de-ferro’ da sociedade executada, a fim de coibir eventual fraude.”

A orientação jurisprudencial é no sentido de admitir a desconsideração expansiva, quando provada a presença do sócio oculto. 

 10.13   Aplicação da teoria do disregard no Direito das Famílias

Diante do que foi exposto, é possível asseverar, sem medo de erro, que a disregard doctrine está vocacionada para impedir o abuso ou a fraude através do uso indevido da personalidade das pessoas jurídicas. 

Ora, nas relações familiares (casamento, união estável, obrigação alimentar etc.), não raro, um estranho e perverso sentimento vingativo aflora nas pessoas, fazendo com que sejam utilizadas as pessoas jurídicas para dar espaço a fraudes pelas quais se intenta prejudicar o ex-cônjuge ou o ex-companheiro que pretende partilhar o patrimônio na dissolução da relação afetiva, o irmão que deseja promover a partilha do patrimônio recebido em sucessão hereditária ou, até mesmo, o filho que cobra pensão alimentícia. 

Por isso, impõe-se aplicar a consagrada teoria do abuso da personalidade jurídica, retirando o véu societário, quando resultam evidentes condutas praticadas pela empresa para, concretamente, prejudicar terceiros, máxime quando se tratar de abuso praticado pelo marido, companheiro ou genitor em detrimento dos legítimos interesses de seu cônjuge, companheiro ou filho .

Nesta linha de intelecção, as nossas Casas Judiciais vêm se sensibilizando com o problema, admitindo a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica em relações de Direito das Famílias, como demonstra este decisum:
“Tendo tocado na partilha consensual à mulher/autora o único bem registrado em nome da sociedade comercial, evidente o dano que a impede de exercer seu direito à meação. Aplicação da teoria da ‘disregard’ para determinar a transferência da titularidade do imóvel à autora, conforme acordado na separação consensual, com sentença homologatória” (TJ/RS, Ac. unân. 8a Câm. Cív., ApCív. 70005866660, rel. Des. José S. Trindade, j. 3.4.03, DOERS 17.4.03, in RBDFam 17:114). 

 10.14   Aplicação da teoria do disregard no Direito das Sucessões

Nas palavras precisas do argentino Guillermo Borda, ocorre com certa frequência a utilização de pessoas jurídicas por pais que pretendem beneficiar alguns de seus filhos em detrimento de outros, tentando alcançar objetivo contrário à lei (frustração do direito à herança). Aqui encontra-se o substrato axiológico da aplicação da desconsideração no direito sucessório, servindo como “ferramenta de que pode se valer o prejudicado para obter o reconhecimento de seu direito integral à herança” .

 10.15   Aplicação da teoria do disregard no âmbito do Direito do Trabalho

Há muito, renomados juristas sustentaram a existência de previsão específica na própria Consolidação das Leis do Trabalho, acolhendo a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica da empresa. A alusão diz respeito ao art. 2o, § 2o, do Texto Consolidado, que, segundo parcela da doutrina, parecia “aplicar a teoria da desconsideração” para afirmar que a personificação societária não seria óbice à proteção do trabalhador, que, naturalmente, é hipossuficiente. Diz o citado dispositivo legal (CLT, art. 2o, § 2o), in litteris: “sempre que uma ou mais empresas, tendo embora, cada uma delas, personalidade jurídica, própria estiverem sob a direção, controle ou administração de outra constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas”. 

Venia maxima concessa, a afirmação de que o mencionado dispositivo legal estaria a acatar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica é equivocada, propiciando indevida confusão conceitual.
Com efeito, o § 2º do art. 2º da Consolidação das Leis do Trabalho cuida, em verdade, de hipótese de responsabilidade solidária entre empresas componentes de grupos econômicos .

Independentemente da ocorrência de abuso no exercício da personalidade jurídica, marcado pela fraude ou pela confusão patrimonial, é possível atingir os bens do sócio ou da empresa controladora ou integrante do grupo econômico. O fundamento dessa responsabilização solidária, portanto, é, tão somente, a ausência de bens executáveis para garantir os interesses do trabalhador. 

Dessa maneira, a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito das relações de trabalho está fundamentada no art. 50 do Código Civil de 2002, aplicável no Direito do Trabalho em face do que dispõe o art. 8o da Consolidação das Leis do Trabalho, afastando-se, em definitivo, a falsa impressão de que a sua base legal seria o art. 2º, § 2º, desse diploma, que, em verdade, consagra hipótese de responsabilização solidária. 

Outrossim, não se ignore que a responsabilidade do sócio, decorrente da disregard doctrine, reclama a prévia formação do devido processo legal, garantido constitucionalmente (CF/88, art. 5o, LV), com a sua cientificação e a possibilidade de defesa, através de procedimento apenso à execução trabalhista, quando provada a inexistência de bens penhoráveis da própria empresa-reclamada. 

 10.16   Aplicação da teoria do disregard no âmbito da Administração Pública

Apesar do silêncio legislativo, é possível sustentar, com forte argumentação, a incidência da desconsideração da personalidade jurídica também na esfera da Administração Pública, com o propósito do obstar prejuízo ao Erário ou à qualidade do serviço público, quando estiver presente um dos requisitos tipificados na Lei Civil. O fundamento é óbvio: preservar o interesse público. 

Um bom exemplo pode ser apresentado, demonstrando a necessidade de impedir que pessoas jurídicas que são formadas fraudulenta ou abusivamente venham a participar de certames licitatórios e celebrem contratos administrativos, afrontando aos mais elementares princípios, como a moralidade. 

Com isso, independentemente de decisão judicial, é possível ao Poder Público desconsiderar a personalidade jurídica para obstar que sociedades de fachada celebrem contratos com o Estado ou declarar a ineficácia de determinados atos que impliquem em prejuízo aos interesses públicos ou violação a texto legal. Sempre, porém, dependendo da prova de ocorrência de um dos requisitos contemplados no art. 50 do Código Civil. 

Pronunciando-se favoravelmente à possibilidade de desconsideração na seara administrativa, o Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de confirmar a tese aqui esposada: 
“A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar a aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída.
A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular” (STJ, ROMS 15166/BA, rel. Min. Castro Meira, DJU 8.9.03, p. 262). 

 10.17   Desconsideração e a declaração de indisponibilidade de bens na liquidação extrajudicial de instituições financeiras

A Lei no 6.024/74, ao disciplinar a intervenção e liquidação extrajudicial de instituições financeiras, em procedimento que se inicia através de resolução do Banco Central do Brasil, prevê a indisponibilidade dos bens pertencentes aos administradores adquiridos nos doze meses antecedentes ao ato liquidatório e o arresto para os bens mais antigos.

Acrescente-se, inclusive, que, além da indisponibilidade de bens, os administradores podem responder por ação de responsabilidade, com o fito de ressarcir eventuais prejuízos dos credores (art. 46 da Lei no 7.913/91). 

Surge, nessa ambientação, interessante problema: é possível estender a indisponibilidade de bens, mencionada no texto legal indicado, aos casos de desconsideração da personalidade jurídica? 

Conquanto alguns precedentes jurisprudenciais admitam a indisponibilidade de bens dos sócios em hipóteses de desconsideração, não parece a melhor solução. Com efeito, a indisponibilidade dos bens encontra amparo em disposição expressa de lei (Lei no 6.024/74), “não tendo cabimento nos casos em que o legislador permanece silente”, conforme entendimento esposado por Daniela Storry Lins.

 10.18   Subcapitalização e desconsideração da personalidade jurídica

A constatação da insuficiência de capital próprio ao desenvolvimento das atividades negociais (subcapitalização) é importante aspecto da pessoa jurídica que tem pertinência à disregard doctrine. É que uma empresa subcapitalizada (com capital insuficiente para as atividades desempenhadas) implica em evidente tentativa de reduzir os riscos intrínsecos à atividade. Afinal, o capital social da pessoa jurídica deve ser compatível à atividade desenvolvida, sob pena de prejuízo de terceiros e fraude. 

Em casos tais, nos quais ocorre infracapitalização de uma sociedade, há de se aplicar a desconsideração da personalidade jurídica com base no abuso praticado pelo sócio que pretendeu fugir dos prováveis riscos do negócio, atendido um de seus pressupostos legais. 

Sem dúvida, a falta de capitalização adequada à real atividade societária é fator suficiente para demonstrar o abuso, ensejando a desconsideração da personalidade jurídica, pois é intuitivo que o direito de associação pressupõe a correta capitalização, garantindo interesses de terceiros. 

 10.19   Desconsideração indireta da personalidade jurídica

Não é raro, infelizmente, encontrar fraudes e abusos cometidos por empresas controladoras, utilizando da personalidade jurídica da empresa controlada (ou coligada, subsidiária integral etc.) para prejuízo de terceiros ou para obtenção de vantagens indevidas. 

Nessa hipótese, encontra-se a chamada desconsideração indireta da personalidade jurídica, através da qual é permitido o levantamento episódico do véu protetivo da empresa controlada para responsabilizar a empresa- controladora (ou coligada...) por atos praticados com aquela de modo abusivo ou fraudulento. 


  • Referência
- FARIAS, Cristiano Chaves. ROSENVALD, Marcelo. Direito Civil Teoria Geral. Capítulo V - A pessoa jurídica, págs. 483-519. 9ªed. Editora Lumen Jures, Rio de Janeiro: 2011.(Fichamento)

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