domingo, 10 de agosto de 2014

Direito das Famílias



MARIA BERENICE DIAS¹


1 DIREITO DAS FAMÍLIAS

1.1 Origem do direito

     "A mais importante função do Estado é organizar a vida em sociedade... Por isso é que lhe cabe impor pautas de condutas... para serem respeitadas por todos".

     "...Ainda que o Estado tenha o dever de regular as relações das pessoas, não pode deixar de respeitar o direito à liberdade e garantir o direito à vida, não vida como mero substantivo, mas vida de forma adjetivada: vida digna, vida feliz... O ordenamento jurídico possibilita a vida em sociedade e é composto de uma infinidade de normas que, na bela expressão de Norberto Bobbio, como as estrelas no céu, jamais alguém consegue contar".

1.2 Lacunas

     "Em tese, o direito pretende abarcar todas as situações fáticas em seu âmbito de regulamentação...Mas há um descompasso, pois a realidade sempre antecede ao direito..."

     "... O fato de não haver previsão legal para situações específicas não significa inexistência de direito à tutela..."

     "... Na omissão legal, deve socorrer-se dos princípios constitucionais que estão no vértice do sistema..."

     "Os princípios constitucionais não se confundem com os princípios gerais de direito que, juntamente com a analogia e os costumes, são elementos de integração subsidiária, aplicáveis apenas na ausência de norma ordinária específica..."

1.3 Origem da família

     "Mesmo sendo a vida aos pares um fato natural, em que os indivíduos se unem por uma química biológica, a família é um agrupamento informal, de formação espontânea no meio social, cuja estruturação se dá através do direito..."

     "... Por isso a família juridicamente regulada nunca consegue corresponder à família natural, que preexiste ao Estado e está acima do direito. A família é uma construção cultural..."

     "A própria organização da sociedade se dá em torno dda estrutura familiar. E foi o intervencionismo estatal que levou à instituição do casamento: nada mais do que uma convenção social para organizar os vínculos interpessoais,... A sociedade, em determinado momento histórico, institui o casamento como regra de conduta..."

     "Em uma sociedade conservadora, os vínculos afetivos... necessitavam ser chancelados pelo... matrimonio.. A família tinha uma formação extensiva, ..., com amplo incentivo à procriação... era entidade patrimonializada.. O núcleo familiar dispunha de perfil hierarquizado e patriarcal".

     "Esse quadro não resistiu à revolução industrial... Foi assim que a mulher ingressou no mercado de trabalho, ... A estrutura da família se alterou, tornou-se nuclear, restrita ao casal e a sua prole... A valorização do afeto nas relações familiares deixou de se limitar apenas ao momento de celebração do matrimonio, devendo perdurar por toda a relação..."

1.4 Origem do direito das famílias

     "A família é o primeiro agente socializador do ser humano. somente com a passagem do homem do estado da natureza para o estado da cultura foi possível a estruturação da família..."

     "A família é cantada e decantada como a base da sociedade e, por essa razão, recebe especial atenção do Estado (art. 226). A própria Declaração Universal dos Direitos do Homem estabelece (XVI 3): a família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado..."

     "É preciso demarcar o limite de intervenção do direito na organização familiar para que as normas estabelecidas não interfiram em prejuízo da liberdade do "ser" sujeito... Ainda que o Estado interesse na preservação da família, cabe indagar se dispõe de legitimidade para invadir a auréola de privacidade e de intimidade das pessoas".

     "Talvez não mais existam razões, quer morais, religiosas, políticas, físicas ou naturais, que justifiquem esta verdadeira estatização do afeto, excessiva e indevida inferência na vida das pessoas. O grande problema reside em se encontrar, na estrutura formalista do sistema jurídico, a forma de proteger sem sufocar e de regular sem engessar".

1.5 Evolução legislativa

     "O antigo Código Civil, que datava de 1916, regulava a família do início do século passado, constituída unicamente pelo matrimônio. ... Impedia sua dissolução... As referências feitas aos vínculos extramatrimoniais e aos filhos ilegítimos eram punitivas e serviam exclusivamente para excluir direitos, na vã tentativa de preservação do casamento".

     "A mais expressiva alteração foi o Estatuto da Mulher Casada (L. 4.121/62), que devolveu a plena capacidade à mulher casada e deferiu-lhe bens reservados que asseguravam a ela a propriedade exclusiva dos bens adquiridos com o fruto de seu trabalho".

     "A instituição do divórcio (EC 9/77 e L 6.515/77) acabou com a indissolubilidade do casamento, eliminando a ideia da família como instituição sacralizada".

     "A Constituição Federal de 1988... Instaurou a igualdade entre o homem e a mulher e esgarçou o conceito de família, passando a proteger de forma igualitária todos os seus membros.Estendeu igual proteção à família constituída pelo casamento, bem como à união estável entre o homem e a mulher e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, que recebeu o nome de família monoparental. Consagrou a igualdade dos filhos, havidos ou não do casamento, ou por adoção, garantindo-lhes os mesmos direitos e qualificações..."

     "... Mas foi a Emenda Constitucional 66 que finalmente eliminou o arcaico instituto da separação, consagrando o divórcio como a única forma de acabar com o matrimônio..."

1.6 Código Civil

     "... Tramitou pelo Congresso Nacional antes da promulgação da Constituição Federal, em 1988, que introduziu diversa ordem de valores, privilegiando a dignidade da pessoa humana..."

     "O Código Civil procurou atualizar os aspectos essenciais do direito de família... Talvez o grande ganho tenha sido excluir expressões e conceitos que causavam grande mal-estar e não mais podiam conviver com a nova estrutura jurídica e a moderna conformação da sociedade".

     "...Corrigiu alguns equívocos e incorporou orientações pacificadas pela jurisprudência, como não mais determinar compulsoriamente a exclusão do sobrenome do marido do nome da mulher. Em boa hora assegurou alimentos mesmo ao cônjuge culpado pela separação...A guarda compartilhada só veio muito depois. Mas continua carecendo de regulamentação a posse de estado de filho, a filiação socioafetiva, há muito já reconhecida em sede jurisprudencial..."

1.7 Tentativa conceitual

     "Dispondo a família de várias formatações, também o direito das famílias precisa ter espectro cada vez mais abrangente... Como esse ramo do direito disciplina a organização da família, conceitua-se o direito de família com o próprio objeto a definir..."

     "A família, apesar do que muitos dizem, não está em decadência. Ao contrário, é o resultado das transformações sociais... Ao Estado, inclusive nas suas funções legislativas e jurisdicionais, foi imposto o dever jurídico constitucional de implementar medidas necessárias e indispensáveis para a constituição e desenvolvimento das famílias".

1.8 Natureza

     "Em face do comprometimento do Estado de proteger a família e ordenar as relações de seus membros, o direito das famílias dispõe de acentuado domínio de normas imperativas... São normas cogentes que incidem independentemente da vontade das partes, daí seu perfil publicista".

     "Imperioso, portanto, reconhecer que o direito das famílias, ainda que tenha características peculiares e alguma proximidade com o direito público, tal não lhe retira o caráter privado, não se podendo dizer que se trata de direito público. Aliás, a tendência é reduzir o intervencionismo do Estado nas relações interpessoais..."

1.9 Conteúdo

     "O direito das famílias - por estar voltado à tutela da pessoa - é personalíssimo, adere indelevelmente à personalidade da pessoa em virtude de sua posição na família durante toda a vida. Em sua maioria, é composto de direitos intransmissíveis, irrevogáveis, irrenunciáveis e indisponíveis. A imprescritibilidade também ronda o direito das famílias..."

     "Tradicionalmente, o direito das famílias é identificado a partir de três grandes eixos temáticos: (a) direito matrimonial -... (b) direito parental - ... (c) direito protetivo ou assistencial - ..."

1.10 Constitucionalização

     "Grande parte do direito civil foi parar na Constituição, que enlaçou temas sociais juridicamente relevantes para garantir-lhes efetividade..."

     "... Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas".

     "Essa é uma característica do chamado Estado social, que intervém em setores da vida privada como forma de proteger o cidadão, postura impensável em um Estado liberal que prestigia, antes e acima de tudo, a liberdade. O direito civil constitucionalizou-se, afastando-se da concepção individualista, tradicional e conservadora-elitista da época das codificações do século passado. Agora, qualquer norma jurídica de direito das famílias exige a presença de fundamento de validade constitucional..."

1.11 Direito subjetivo da família

     "... Direito subjetivo é a posição de uma pessoa frente a determinada norma de direito objetivo. Essa posição pode ser favorável a alguém, o que o torna titular do direito; ou pode ser desfavorável, o que leva ao surgimento de um dever jurídico".

     "...Assim, o direito subjetivo da família não se destina exclusivamente a conceder direitos, mas muito mais a atribuir deveres..."

1.12 Legislação extravagante

     "... também regula o direito das famílias a seguinte legislação extravagante:

LEIS

765, de 14 de julho de 1949 - Dispõe sobre o registro civil de nascimento

1.110, de 23 de maio de 1950 - Regula o reconhecimento dos efeitos civis do casamento religioso

1542, de 5 de Janeiro de 1952 - Dispõe sobre o casamento de funcionários da carreira de Diplomata com pessoa de nacionalidade estrangeira

3.764, de 25 de abril de 1960 - Estabelece rito sumaríssimo para retificação no registro civil.

4.121, de 27 de agosto de 1962 - Dispõe sobre a situação jurídica da mulher casada

5.478, de 25 de julho de 1968 - Dispõe sobre ação de alimentos e dá outras providências

5.891, de 12 de junho de 1973 - Altera normas sobre exame médico na habilitação de casamento entre colaterais de terceiro grau.

6.015, de 31 de dezembro de 1973 - Dispões sobre os Registros Públicos e dá outras providências;

6.515, de 26 de dezembro de 1977 - Regula os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento, seus efeitos e respectivos processos, e dá outras providências;

6.880, de 9 de dezembro de 1980 - Dispõe sobre o Estatuto dos Miliares;

8.009, de 29 de março de 1990 - Dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família;

8.069, de 13 de julho de 1990 - Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente;

8.560, de 29 de dezembro de 1992 - Regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento e dá outras providências;

8.971, de 29 de dezembro de 1994 - Regula o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão;

9.263, de 12 de janeiro de 1996 - Regula o §7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá providências;

9.278, de 10 de maio de 1996 - Regula o §3º do art. 226 da Constituição Federal;

10.050, de 14 de novembro de 2000 - Altera o art. 1.611 da Lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916 - Código Civil, estendendo o benefício do §2º ao filho necessitado portador de deficiência.

DECRETO-LEI

3.200, de 19 de abril 1941 - Dispões sobre a organização e proteção da família, autorizando o casamento de colaterais de terceiro grau.


__________________________________________


1 - DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. Capítulo 1, págs. 25-38. 9. ed., atual e ampl de acordo com: Lei 12.344/2010 (regime obrigatório de bens): Lei 12.398/2011 (direito de visita dos avós). - São Paulo: Editora dos Tribunais, 2013.




Bons estudos!


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe aqui seu comentário!