sábado, 23 de agosto de 2014

Controle difuso

PEDRO LENZA¹

6. CONTROLE DIFUSO

6.1 Origem histórica: Marbury versus Madison, Sessão de fev. de 1803 (I, repertório de cranch, 137-180)

       "Pode-se, assim, afirmar que a noção e ideia de controle difuso de constituciona­lidade, historicamente, deve-se ao famoso caso julgado pelo Juiz John Marshall da Suprema Corte norte-americana, que, apreciando o caso Marbury v. Madison, em 1803, decidiu que, havendo conflito entre a aplicação de uma lei em um caso concreto e a Constituição, deve prevalecer a Constituição, por ser hierarquicamente superior".

6.2 Noções gerais

     "O controle difuso, repressivo, ou posterior, é também chamado de controle pela via de exceção ou defesa, ou controle aberto, sendo realizado por qualquer juízo ou tribunal do Poder Judiciário..."

     "Exemplo: na época do Presidente Collor, os interessados pediam o desbloqueio dos cruzados fundando-se no argumento de que o ato que motivou tal bloqueio era inconstitucional. O pedido principal não era a declaração de inconstitucionalidade, mas sim o desbloqueio!"

6.3 Controle difuso nos tribunais e a cláusula de reserva de plenário (full bench). Art. 97 da CF/88 

6.3.1 Regras gerais 

      "... a parte sucumbente poderá devolver a análise da matéria ao tribunal ad quem ...verificando-se que existe questionamento incidental sobre a constituciona­lidade de lei ou ato normativo, suscita-se uma questão de ordem e a análise da constitucionalidade da lei é remetida ao pleno, ou órgão especial do tribunal, para resolver aquela questão suscitada".

     "Nesse sentido é que o art. 97 da CF/88 estabelece que somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público." Temos aqui a chamada cláusula de reserva de plenário, também denominada regra full bench"

     "No entanto, enaltecendo o princípio da economia processual, da segurança jurídica e na busca da desejada racionalização orgânica da instituição judiciária brasileira, vem-se percebendo a inclinação para a dispensa do procedimento do art. 97 toda vez que já haja decisão do órgão especial ou pleno do tribunal, ou do STF, o guardião da Constituição sobre a matéria".

     "... não há a ne­cessidade de se observar a regra do art. 97:
  • na citada hipótese do art. 481 do CPC, acima; 
  • se Tribunal mantiver a constitucionalidade do ato normativo, ou seja, não afas­tar a sua presunção de validade (o art. 97 determina a observância do full bench para declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público); 
  • nos casos de normas pré-constitucionais, porque a análise do direito editado no ordenamento jurídico anterior em relação à nova Constituição não se funda na teoria da inconstitucionalidade, mas, como já estudado, em sua recepção ou revogação;" 
  • quando o Tribunal utilizar a técnica da interpretação conforme a Constituição, pois não haverá declaração de inconstitucionalidade; 
  • nas hipóteses de decisão em sede de medida cautelar, já que não se trata de decisão definitiva".
6.3.2 A cláusula de reserva de plenário se aplica às Turmas do STF no julgamento de RE?
     "... , tendo como premissa que o julgamento do RE (e, assim, a declaraçãoincidental de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo) é de competência da Turma no STF, o encaminhamento do RE ao Plenário depende do preenchimento das hipóteses regimentais, e não, simplesmente, de requerimento da parte".

     "Dessa forma, de acordo com as normas regimentais, a cláusula de reserva de plenário não se aplica às Turmas do STF no julgamento do RE, seja por não se tratar de "tribunal" no sentido fixado no art. 97 (...), seja, tendo em vista ser função primordial e essencial da Corte a declaração de inconstitucionalidade, a possi­bilidade de afetação dessa atribuição aos seus órgãos fracionários, no caso, as Turmas".
6.3.3 A cláusula de reserva de plenário aplica-se às Turmas Recursais dos Juizados Especiais? 

     "...as Turmas de Juizados poderão declarar incidentalmente a incons­titucionalidade de uma lei ou afastar a sua incidência no todo ou em parte sem que isso signifique violação ao art. 97 da CF/88 e à SV 10/STF".

6.3.4 A cláusula de reserva de plenário aplica-se à decisão de juízo monocrático de primeira instância? 

      "Como visto, a regra do art. 97 é estabelecida para "tribunal'', não estando, por­ tanto, direcionada para o juízo monocrático..."

6.4 Efeitos da decisão

6.4.1 Para as partes 

     "Regra geral, os efeitos de qualquer sentença valem somente para as partes que litigaram em juízo, não extrapolando os limites estabelecidos na lide".

     "Assim, no controle difuso, para as partes os efeitos serão: a) interpartes e b) ex tunc".

     "Cabe alertar que o STF já entendeu que, mesmo no controle difuso, poder-se-á dar efeito ex nunc ou pro futuro".
6.4.2 Para terceiros (art. 52, X)

6.4.2.1 Procedimento

     "Declarada inconstitucional a lei pelo STF, no controle difuso, desde que tal deci­são seja definitiva e deliberada pela maioria absoluta do pleno do tribunal (art. 97 da CF/88), o art. 178 do Regimento Interno do STF (RISTF) estabelece que será feita a comunicação, logo após a decisão, à autoridade ou órgão interessado, bem como, de­ pois do trânsito em julgado, ao Senado Federal, para os efeitos do art. 52, X, da CF/88".

     "O art. 52, X, da CF/88, por sua vez, estabelece ser competência privativa do Senado Federal, mediante o instrumento da resolução, suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF".

     "...após a leitura em plená­rio, a comunicação ou representação será encaminhada à Comissão de Constitui­ção, Justiça e Cidadania, que formulará projeto de resolução suspendendo a execu­ção da lei, no todo ou em parte (CF, art. 52, X)".

6.4.2.2 Amplitude do art. 52, X

     "A suspensão pelo Senado Federal poderá dar-se em relação a leis federais, estaduais, distritais ou mesmo municipais que forem declaradas inconstitucionais pelo STF, de modo incidental, no controle difuso de constitucionalidade".

6.4.2.3 A expressão "no todo ou em parte"

     "A expressão "no todo ou em parte" deve ser interpretada como sendo impossível o Senado Federal ampliar, interpretar ou restringir a extensão da decisão do STF". 

6.4.2.4 Efeitos propriamente ditos 

     "Desde que o Senado Federal suspenda a execução, no todo ou em parte, da lei levada a controle de constitucionalidade de maneira incidental e não principal, a referida suspensão atingirá a todos, porém valerá a partir do momento que a resolução do Senado for publicada na Imprensa Oficial".

     "Assim, os efeitos serão erga omnes, porém ex nunc, não retroagindo". 

6.4.2.5 O Senado é obrigado a suspender os efeitos? 

     "Deve-se, pois, entender que o Senado Federal não está obrigado a suspender a execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tri­bunal Federal. Trata-se de discricionariedade política, tendo o Senado Federal total liberdade para cumprir o art. 52, X, da CF/88. Caso contrário, estaríamos diante de afronta ao princípio da separação de Poderes". 

6.5 Teoria da transcedência dos motivos determinantes da sentença no controle difuso: análise e crítica - abstrativização do controle difuso? - tendência para uma maior objetivação do recurso extraordinário? Perspectivas do controle incidental em controle concentrado

6.5.1 Abstrativização do controle difuso? 

     "A doutrina sempre sustentou, com Buzaid e Grinover, que, "se a declaração de inconstitucionalidade ocorre incidentalmente, pela acolhida da questão prejudicial que é fundamento do pedido ou da defesa, a decisão não tem autoridade de coisa julgada, nem se projeta, mesmo inter partes - fora do processo no qual foi proferida".

     "Contudo, respeitável parte da doutrina e alguns julgados do STF ("Mira Estre­la" e "progressividade do regime de cumprimento de pena nos crimes hediondos") e do STJ rumam para uma nova interpretação dos efeitos da declaração de incons­titucionalidade no controle difuso pelo STF".

     "Nessa mesma linha, Teori Albino Zavascki, também em sede doutrinária, sus­tenta a transcendência, com caráter vinculante, de decisão sobre a constitucionalida­de da lei, mesmo em sede de controle difuso".

     "Os principais argumentos a justificar esse novo posicionamento podem ser as­sim resumidos:
  • força normativa da Constituição;
  • princípio da supremacia da Constituição e a sua aplicação uniforme a todos os destinatários;
  • o STF enquanto guardião da Constituição e seu intérprete máximo;
  • dimensão política das decisões do STF".
     "..., embora a tese da transcendência decorrente do controle di­fuso pareça bastante sedutora, relevante e eficaz, inclusive em termos de econo­mia processual, de efetividade do processo, de celeridade processual (art. 5.0,LXXVIII - Reforma do Judiciário) e de implementação do princípio da força normativa da Constituição (Konrad Hesse), afigura-se faltar, ao menos em sede de controle difuso, dispositivos e regras, sejam processuais, sejam constitucionais, para a sua implementação".

     "O efeito erga omnes da decisão foi previsto somente para o controle concentra­do e para a súmula vinculante (EC n. 45/2004) e, em se tratando de controle difuso, nos termos da regra do art. 52, X, da CF/88, somente após atuação discricionária e política do Senado Federal".

     "Por fim, sustentamos (já que não nos filiamos à teoria da abstrativização) a pos­sibilidade de se conseguir o objetivo pretendido mediante a edição de súmula vincu­lante, o que, em nosso entender, seria muito mais legítimo e eficaz, além de respeitar a segurança jurídica, evitando o casuísmo". 

6.5.2 Objetivação do recurso extraordinário?

     "Enquanto essa questão não se soluciona (o posicionamento do STF sobre a mu­tação ou não do art. 52, X, no controle difuso), temos de reconhecer que, em algu­mas situações, o legislador tendeu para a ideia da abstrativização, por exemplo, no julgamento da repercussão geral no recurso extraordinário (art. 543-A do CPC), que, inclusive, poderá implementar-se por amostragem quando houver multiplici­dade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia (art. 543-B do CPC)".
     "Parte-se de processos-modelos (de situações individuais e concretas, com cará­ter subjetivo e em defesa de interesses das partes), que repercutirão sobre os demais que ficaram sobrestados".

     "Nas duas situações, tanto na hipótese do recurso extraordinário como na do re­curso especial, o legislador fez a previsão da possibilidade de manifestação de amici curiae (art. 543-A, § 6º, e art. 543-C, § 4º, do CPC), o que, ao menos, caracteriza mecanismo de legitimação da decisão, especialmente nas hipóteses em que os re­cursos represados terão o seguimento denegado em virtude da solução a ser dada no processo-modelo (arts. 543-B, § 2.o, e 543-C, § 7.0, 1, do CPC)". 


6.5.3 Controle incidental em controle concentrado abstrato e o seu efeito "erga omnes" - eficácia da decisão do STF 

     "Como se sabe, no controle difuso a declaração de inconstitucionalidade se dá de modo incidental e se caracteriza como questão prejudicial incidental..." 

     "Por outro lado, no controle concentrado a declaração de inconstitucionalidade se dá de modo principal e é o próprio pedido formulado na ação (ADI) que se fundamenta em violação formal ou material à Constituição..."

     "Agora, imaginemos que em determinado controle concentrado e em abstrato, ao se verificar os fundamentos para nulificar ou não uma lei, entenda o STF que outro ato normativo, que não fazia parte do pedido, é inconstitucional".

     "Estamos diante da problemática que surgiu no julgamento da ADI 4.029, que tinha por objeto a Lei n. 11.516/2007, fruto de conversão da MP n. 366/2007 e que dispôs sobre a criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), autarquia federal dotada de personalidade jurídica de direito público, au­tonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente".

     "No caso concreto, referida MP foi convertida na lei objeto da ADI sem a aprecia­ção pela comissão mista de Deputados e Senadores, havendo apenas a emissão de pa­recer individual de seu relator, nos termos do art. 6.0, § 2.0,103 da Res. n. 1/2002-CN".

     "Dessa forma, embora a lei objeto da ADI tivesse seguido o procedimento de tramitação das medidas provisórias previsto na Res. n. 1/2002-CN, entendeu o Tri­bunal que referido procedimento não se conforma ao art. 62, § 9º, CF/88".

     "O interessante é que a declaração incidental de inconstitucionalidade (muito embora em controle concentrado e em ADI genérica), produziria efeitos erga omnes, ex tunc e vinculante, acarretando a inconstitucionalidade de centenas de medidas provisórias que não observaram o citado procedimento constitucional, apesar de não serem objeto na ação direta de inconstitucionalidade em julgamento".

     "Diante dessa consequência do resultado da declaração incidental, que repercuti­ria sobre os mais diversos setores da vida do País, decidiu o Tribunal, aplicando o art. 27 da Lei n. 9.868/99,"" modular os efeitos da decisão, dando eficácia ex nunc em relação à pronúncia de nulidade dos dispositivos da resolução do Congresso Na­cional, passando a exigir o respeito ao art. 62, § 9º, somente a partir daquela decisão. Assim, todas as leis aprovadas de acordo com o procedimento da Res. n. 1/2002 que dispensaram a emissão de parecer pela comissão mista foram declaradas, por esse aspecto, constitucionais". 

6.6 Controle difuso em sede de ação civil pública 

     "..., só será cabível o controle difuso, em sede de ação civil pública "...como instrumento idôneo de fiscalização incidental de constitucionalidade, pela via difusa, de quaisquer leis ou atos do Poder Público, mesmo quando contestados em face da Constituição da República, desde que, nesse processo coletivo, a controvérsia constitucional, longe de identificar-se como objeto único da demanda, qualifique­-se como simples questão prejudicial, indispensável à resolução do litígio princi­pal" (Min. Celso de Mello, Rcl 1.733-SP, DJ de 1.0.12.2000 - lnf 212/STF)".

      "Por conseguinte, a jurisprudência do STF "... exclui a possibilidade do exercício da ação civil pública, quando, nela, o autor deduzir pretensão efetivamente destinada a viabilizar o controle abstrato de constitucionalidade de determinada lei ou ato nor­mativo (RDA 206/267, Rel. Min. Carlos Velloso - Ag. 189.601-GO (AgRg), Rel.Min. Moreira Alves)".

     "Mas atente à regra geral: a ação civil pública não pode ser ajuizada como sucedâneo de ação direta de inconstitucionalidade, pois, em caso de produção de efeitos erga omnes, estaria provocando verdadeiro controle concentrado de constitucionalidade, usurpando competência do STF (cf. STF, Rcl 633-6/SP, Min. Francisco Rezek, DJ de 23.09.1996, p. 34945)".

      "No entanto, sendo os efeitos da declaração reduzidos somente às partes (sem amplitude erga omnes), ..., aí sim seria possível o controle difuso em sede de ação civil pública, verificando-se a declaração de inconstitucionalidade de modo incidental e restringindo-se os efeitos inter partes".

     "Como exemplo, de maneira precisa, Alexandre de Moraes cita determinada ação civil pública ajuizada pelo MP, em defesa do patrimônio público, para anulação de licitação baseada em lei municipal incompatível com o art. 37 da CF, declarando o juiz ou tribunal, no caso concreto, a inconstitucionalidade da referida lei, reduzidos os seus efeitos somente às partes".

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1 - LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. Capítulo 6, pág. 306-328. 18.ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Saraiva, 2014

Bons estudos!

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