domingo, 10 de agosto de 2014

Famílias plurais


Maria Berenice Dias¹


2 Famílias plurais

2.1 Breve justificativa

     "Pensar em família ainda traz à mente o modelo convencional: um homem e uma mulher unidos pelo casamento e cercados de filhos. Mas essa realidade mudou. Hoje, todos já estão acostumados com famílias que se distanciam do perfil tradicional".

     "A vastidão de mudanças das estruturas políticas, econômicas e sociais produziu reflexos nas relações jurídico-familiares. Ainda que continue a família a ser essencial para a própria existência da sociedade e do Estado, houve uma completa reformulação do seu conceito..."


2.2 Família constitucionalizada

     "... O constituinte de 1988 consagrou, como dogma fundamental, antecedendo a todos os princípios, a dignidade da pessoa humana (CF 1.º III), impedindo assim a superposição de qualquer instituição à tutela de seus integrantes..."

     "A Constituição Federal, ..., viu a necessidade de reconhecer a existência de outras entidades familiares, além das constituídas pelo casamento. Assim, enlaçou no conceito de família e emprestou especial proteção à união estável (CF 226 § 3.º) e à comunidade formada por qualquer dos pais com seus descendentes (CF 226 § 4.º), que começou a ser chamada de família monoparental..."

     "Nos dias de hoje, o que identifica a família não é nem a celebração do casamento nem a diferença de sexo do par ou o envolvimento de caráter sexual. O elemento distintivo, que a coloca sob o manto da juridicidade, é a presença de um vínculo afetivo a unir as pessoas com identidade de projetos de vida e propósitos comuns, gerando comprometimento mútuo... A família de hoje já não se condiciona aos paradigmas originários: casamento, sexo e procriação..."

     "O pluralismo das relações familiares - ... - ocasionou mudanças na própria estrutura da sociedade... A consagração da igualdade, o reconhecimento da existência de outras estruturas de convívio, a liberdade de reconhecer filhos havidos fora do casamento operaram verdadeira transformação na família".


2.3 Conceito atual de família

     "... É mais ou menor intuitivo identificar família com a noção de casamento, ... Também vem à mente a imagem da família patriarcal... Essa visão hierarquizada da família, ..., sofreu, com o tempo, enormes transformações..."

     (...)

     "A lei nunca se preocupou em definir família. Limitava-se a identificá-la com o casamento... A Lei Maria (L 11.340/06), ..., identifica como família qualquer relação de afeto (LMP 5.º III). Com isso, não mais se pode limitar o conceito de entidade familiar ao rol constitucional..."

     (...)

   "É necessário ter uma visão pluralista da família, abrigando os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar o elemento que permite enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independentemente de sua conformação... Esse é o divisor entre o direito obrigacional e o familiar: os negócios têm por substrato exclusivamente a vontade, enquanto o traço diferenciador do direito da família é o afeto..."

     (...)


2.4 Matrimonial

     (...)

     "A Igreja Católica consagrou a união entre um homem e uma mulher como sacramento indissolúvel: até que a morte os separe... Essa conservadora cultura, ..., acabou levando o legislador, no início do século passado, a reconhecer juridicidade apenas à união matrimonial".

     "O Estado solenizou o casamento como uma instituição e o regulamentou exaustivamente... Reproduziu o legislador civil de 1916 o perfil da família então existente: matrimonializada, patriarcal, hierarquizada, patrimonializada e heterossexual..."

     "O interesse estatal na manutenção do casamento levou,..., à consagração de sua indissolubilidade e à obrigatória identificação da família pelo nome do varão. Ao casar, a mulher tornava-se relativamente capaz, não podia trabalhar nem administrar seus bens. O regime da comunhão universal de bens, como modelo oficial, mostra o significado que tinha o casamento... Era possível ao marido pedir anulação do casamento alegando o desvirginamento da mulher. Fora disso, só cabia o rompimento do casamento pelo desquite,... Não eram mais casados, cessavam os deveres matrimoniais, mas o casamento permanecia hígido e eles não podiam casa novamente".

     "...Apesar do verdadeiro repúdio da legislação em reconhecer quaisquer outras uniões, ..., sempre existiram vínculos afetivos à margem do casamento... Daí a Lei do Divórcio, que, em 1977, consagrou a dissolução do vínculo matrimonial, mudou o regime legal de bens para o da comunhão parcial e tornou facultativa a adoção do nome do marido".

     (...)


2.5 Informal     

     "A lei emprestava juridicidade apenas à família constituída pelo casamento, vedando quaisquer direitos às relações nominadas de adulterinas ou concubinárias...Os filhos havidos de relações extramatrimoniais... não podiam sequer pleitear reconhecimento enquanto o genitor fosse casado".

     "O legislador,..., negava consequencias jurídicas a vínculos afetivos fora do casamento... Tal ojeriza, entretanto, não coibiu o surgimento de relacionamentos sem respaldo legal... Quando o rompimento dessas uniões, seus partícipes começaram a bater às portas do Judiciário..., quando ausente patrimônio a ser partilhado, as identificava como relação de trabalho, concedendo à mulher indenização por serviços domésticos prestado... Mas nada mais se cogitava conceder, nem alimentos, nem direitos sucessórios".

     "Essas estruturas familiares, ainda que rejeitadas pela lei, acabaram aceitas pela sociedade, fazendo com que a Constituição albergasse no conceito de entidade familiar o que chamou de união estável, ...".


2.6 Homoafetiva

     (...)

     "As inúmeras decisões judiciais atribuindo consequências jurídicas a essas relações levou o Supremo Tribunal Federal a reconhecê-las como união estável com iguais direitos e deveres. A partir desta decisão passou a justiça a admitir a conversão da união homoafetiva em casamento...".

     (...)


2.7 Paralela ou simultânea

     (...)

     "O Código Civil continuou punindo a "concubina", cúmplice de um adultério, negando-lhe os direitos assegurados à companheira na união estável. Somente na hipótese de a mulher alegar desconhecimento da duplicidade de vidas do varão é que tais vínculos são alocados no direito obrigacional e lá tratados como sociedades de fato...".

     (...)

     "A quem quer negar efeitos jurídicos, justificativas não faltam. A alegação é de que a distinção entre concubinato adulterino e união estável busca manter coerência com o preceito da monogamia...".

     "Outro fundamento de grande voga é que o Estado não pode dar proteção a mais de uma família ao mesmo tempo... Também serve de justificativa o fato de a lei reconhecer a anulabilidade das doações promovidas pelo cônjuge adúltero ao seu cúmplice (CC 550) e a revogabilidade das transferências de bens feitas ao concubino (CC 1.642 V).."

     "Quando a mulher afirmar desconhecer a duplicidade de vidas do parceiro, a união é alocada no direito obrigacional e lá tratada como sociedade de fato... A esposa saber do relacionamento do marido não tem qualquer significado. O homem que foi infiel, desleal a duas mulheres, é "absolvido", nada lhe é imposto...".

     "... Ao contrário do que dizem muitos - e do que tenta dizer a lei (CC 1.727) -, o só fato de relacionamentos afetivos não poderem ser convertidos em casamento nem por isso merecem ficar fora do âmbito do direito das famílias...".

     (...)

     "Finda a relação, comprovada a concomitância com um casamento, impositiva a divisão do patrimônio acrescido durante o período de mantença do dúplice vínculo..".

     (...)

     "Na hipótese de falecimento do varão casado, a depender do regime de bens, é necessário afastar a meação da viúva...Inexistindo herdeiros na classe dos descendentes e ascendentes, a herança deve ser dividida em partes iguais entre a viúva e a convivente".

     "Havendo prova da aquisição de patrimônio comum durante a união, imperiosa a partilha dos bens, cuja demanda é da competência das varas cíveis e não das varas de família".

     "Nem o STJ nem o STF reconhecem a existência das uniões paralelas...".


2.8 Poliafetiva

     "A escritura pública declaratória de união poliafetiva de um homem com duas mulheres repercutiu como uma bomba. Foi considerada nula, inexistente, além de indecente, é claro. E acabou rotulada como verdadeira afronta à moral e aos bons costumes".

     "Mas o fato é que ninguém duvida da existência desta espécie de relacionamento".

     (...)


2.9 Monoparental

     "A Constituição, ao esgarçar o conceito de família, elencou como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (CF 226 § 4.º)..."


2.10 Parental ou anaparental

     "... A convivência entre parentes ou entre pessoas, ainda que não parentes, dentro de uma estrutura com identidade de propósito, impõe o reconhecimento da existência de entidade familiar balizada com o nome de família parental ou anaparental".

     "... Ainda que inexista qualquer conotação de ordem sexual, a convivência identifica comunhão de esforços, cabendo aplicar, por analogia, as disposições que tratam do casamento e da união estável... Cabe lembrar que essas estruturas de convívio em nada se diferenciam da entidade familiar de um dos pais com seus filhos e que também merece proteção constitucional".


2.11 Composta, pluriparental ou mosaico

     "... A especificidade decorre da peculiar organização do núcleo, reconstruído por casais onde um ou ambos são egressos de casamentos ou uniões anteriores. Eles trazem para  nova família seus filhos e , muitas vezes, têm filhos em comum. É a clássica expressão: os meus, os teus, os nossos..."

     (...)

     "Admite a lei a possibilidade de adoção pelo companheiro do cônjuge do genitor que recebe o nome de adoção unilateral (ECA 41 § 1.º)..."

     "Começou a jurisprudência a atribuir encargos ao... padastro. Sob o nome de paternidade alimentar é reconhecido ao filho do cônjuge ou companheiro direitos a alimentos, comprovada a existência de vínculo afetivo entre ambos, e que tenha ele assegurado sua mantença durante o período em que conviveu com o seu genitor...".


2.12 Natural, extensa ou ampliada

     "O conceito de família natural é trazido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (25): comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes. A expressão família natural está ligada à ideia de família biológica...

     "A Lei 12.010/09 introduziu o conceito de família extensa ou ampliada: aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade...".

     "... A tendência da doutrina é reconhecer que se trata de uma espécie de família substituta, até porque, sob uma perspectiva prática, os parentes próximos precisam regularizar a situação por meio da guarda, tutela ou mesmo adoção".


2.13 Substituta

     "... Somente não havendo possibilidade de reinserção na família biológica nem inclusão na família extensa é que se passa a falar em família substituta".


2.14 Eudemonista

     "A ideia de família formal, decorrente do casamento, vem cedendo lugar à certeza de que são as relações afetivas o elemento constitutivo dos vínculos interpessoais..."

     "... família eudemonista, que busca a felicidade individual vivendo um processo de emancipação de seus membros. O eudemonismo é a doutrina que enfatiza o sentido da busca pelo sujeito de sua felicidade. A absorção do princípio eudemonista pelo ordenamento altera o sentido da proteção jurídica da família, deslocando-o da instituição para o sujeito..."



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1 - DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. Capítulo 2, págs. 39-59. 9. ed., atual e ampl de acordo com: Lei 12.344/2010 (regime obrigatório de bens): Lei 12.398/2011 (direito de visita dos avós). - São Paulo: Editora dos Tribunais, 2013.


Bons estudos!

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